Com a expansão dos Brics batendo à porta, o sul global não deve mais ser um espectador passivo nas discussões sobre direitos humanos. Um exemplo é um evento inédito que reuniu, no Rio de Janeiro, representantes de 17 países para discutir novos caminhos na governança global do tema.
A primeira edição da Mesa Redonda China-Estados Latino-Americanos e Caribenhos sobre Direitos Humanos, atraiu um grupo diverso de acadêmicos, líderes políticos e especialistas, sob a batuta da Universidade Renmin da China e da Universidade Federal Fluminense.
O evento também foi vitrine para a diplomacia chinesa, que busca estreitar laços na região e fazer contraponto à narrativa ocidental, que aponta – e condena com um rigor nem sempre dispensado a aliados – violações a direitos políticos e civis no país. Os principais flancos são a repressão a dissidentes em Hong Kong e o tratamento dado à minoria uigur em Xinjiang. A China nega acusações de violação, evocando questões de segurança interna e combate ao extremismo.
Em contraste com o consenso ocidental, que põe no topo as liberdades individuais, os direitos humanos, na perspectiva chinesa, estão mais ligados ao coletivo e à estabilidade social. Um conceito central nas discussões foi o chamado ‘direito ao desenvolvimento’. Representantes como Liu Chen, professora da Universidade de Estudos Interculturais de Pequim, defenderam que o desenvolvimento coletivo, com foco na erradicação da pobreza e na infraestrutura, deve ser prioridade para as nações em desenvolvimento. Hu Yuhong, professor da Universidade de Ciências Políticas e Direito do Leste da China, resumiu a questão em uma máxima do presidente chinês Xi Jinping: “viver bem é o melhor direito humano”.
O exemplo chinês foi citado como exemplo de sucesso por participantes latinos, com a China sendo elogiada por ter retirado 800 milhões da pobreza nas últimas quatro décadas. A hegemonia ocidental na governança dos direitos humanos, por outro lado, foi alvo de críticas.
Jaime Fernando Estenssoro Saavedra, da Universidade de Santiago do Chile, argumentou que os direitos humanos, tal como formulados pelos EUA e Europa, funcionam na prática como ferramentas de dominação. A tese reverberou entre outros panelistas, que defenderam um redesenho desse sistema a partir do sul global.
Representantes da América Latina, como Sixto Pereira Galeano, ex-senador paraguaio, e Victoria Analía Donda Pérez, deputada argentina, ecoaram o desejo de romper com a dependência histórica de potências ocidentais. Galeano criticou a submissão do Paraguai aos Estados Unidos, sendo o único país da região que ainda mantém relações com Taiwan, enquanto Donda Pérez sugeriu que democracia e direitos humanos precisam ser repensados à luz dos contextos locais, com foco no combate à pobreza e à desigualdade.
O presidente do IBGE, Marcio Pochmann, trouxe à tona alguns dos enroscos à vista. A velha expansão populacional, destacou, está dando lugar a uma outra realidade: fora o continente africano, países ainda pobres já enfrentam um tombo demográfico. “Estamos falando hoje de expectativas de vidas no mínimo duas vezes maiores… de uma sociedade com um protagonismo feminino que era praticamente inimaginável há 200 anos… isso exige uma reflexão mais ampla sobre direitos humanos na atualidade”.
Reformar ou substituir?
Outro tema-chave foi a crise de legitimidade das instituições internacionais, especialmente a ONU. Para muitos, incluindo Jones Cooper, professor da Universidade do Panamá, a questão não é apenas reformar essas instituições, mas garantir que novas vozes sejam ouvidas. A integração de enfoques de gênero, raça e etnia nos direitos humanos é urgente, mas isso não resolve o problema maior: como essas novas abordagens serão implementadas em sistemas já profundamente hierárquicos?
A substituição desse sistema por um novo, possivelmente liderado pelo gigante asiático, não escapa de questionamentos. Apesar dos sinais de uma disposição à abertura no futuro, fez falta um debate mais direto sobre o lugar das liberdades individuais no modelo chinês. Questionado a respeito por CartaCapital, Wang Wen, reitor do Instituto Chongyang da Universidade Renmin, foi comedido: “Queremos construir um país mais forte e uma sociedade mais feliz. Com mais segurança e mais qualidade de vida, nossos direitos humanos estarão muito mais protegidos.”
Entre críticas e propostas, o encontro deixou claro que a construção de um novo paradigma de direitos humanos será complexa. Para a América Latina e o Caribe, a principal lição da China não é replicar seu modelo, mas aprender com seus exemplos bem-sucedidos para enfrentar, com autonomia, nossas próprias desigualdades e crises.
*A jornalista viajou a convite da organização do evento.