Escalada das emendas parlamentares ajuda a deturpar o processo eleitoral e a própria democracia
A escalada das emendas parlamentares, que usurpa dinheiro público, desviando recursos de programas sociais e bagunçando o Orçamento, ajuda a deturpar o processo eleitoral e, em consequência, a própria democracia.
Em todo o mundo, compra de voto é crime eleitoral grave. No Brasil também, obviamente. As razões para que a compra de votos seja considerada crime se concentram no fato de que o ato interfere na escolha dos eleitores, distorcendo o resultado eleitoral e, em consequência, conturbando o processo democrático. Em última análise, a democracia sai ferida.
As emendas parlamentares não se enquadram, em termos legais, nos critérios que definem o crime eleitoral da compra de votos. Mas, na prática, não estão muito longe disso. Na imensa maioria dos casos, o dinheiro das emendas é destinado a currais eleitorais de políticos, colaborando para dificultar a alternância no poder e perpetuar famílias ou grupos na administração municipal.
São também usurpadoras de recursos escassos, contribuindo para restringir programas sociais e desviar dinheiro destinado ao atendimento público dos cidadãos. Além disso, ao pulverizar recursos, sem integração com outros programas e políticas, bagunçam o planejamento orçamentário, reduzindo a potência e os objetivos da política fiscal.
Nas eleições municipais de domingo (6.out.2024), as hoje obesas emendas parlamentares contribuíram, se não foram decisivas, para o recorde de reeleições apontado pelas urnas. Levantamento do Poder360 constatou que, num grupo das 100 cidades campeãs no recebimento de emendas nos últimos 4 anos, 50 dos 51 prefeitos que concorreram à reeleição foram reeleitos.
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O levantamento também apurou que, no conjunto dos municípios, excetuados apenas os que terão 2º turno, foram reeleitos 82% dos prefeitos que tentaram a reeleição –recorde absoluto. Na eleição municipal anterior, em 2020, o percentual de reeleitos ficou em 63% dos que tentaram um 2º mandato.
A história das emendas parlamentares brasileiras começa ainda em meados da década de 1990, com uma espécie de cenoura para atrair congressistas para a base do governo ou aplacar oposicionistas, mas sem que o Executivo transferisse poder de distribuição de recursos para o Legislativo.
Essa divisão do Orçamento entre Executivo e Legislativo, meio para inglês ver, durou enquanto a economia, bem ou mal, apresentava crescimento. O crescimento e as receitas dele derivadas aplacaram o conflito distributivo entre os Poderes, até que a crise, a partir da 2ª metade da década passada, jogou o conflito distributivo para o centro do palco político.
O ponto de inflexão veio em 2011, quando a então presidente Dilma Rousseff (PT) contingenciou a totalidade das emendas parlamentares e as manteve congeladas até o fim do ano. A reação do Congresso veio sob a forma de uma sucessão de emendas constitucionais, regulando as emendas, em favor dos congressistas.
De 2014 a 2020, as emendas avançaram de 4% das despesas discricionárias (não obrigatórias) previstas no Orçamento para 28,8%, em 2020, devendo recuar para 20% em 2024. O volume de emendas, igualmente, registra uma escalada, a partir de 2016, passando de R$ 11 bilhões, naquele ano, a R$ 47,5 bilhões, em 2024, depois de saltar de R$ 15,7 bilhões, em 2017, para R$ 45,5 bilhões, em 2020.
A divisão do bolo também sofreu mudanças radicais, em favor dos congressistas. Em 2014, 83% das transferências federais para Estados, municípios e instituições beneficiadas foram feitas pelo governo federal e 17% por meio de emendas parlamentares. Em 2023, houve quase um empate, com o Executivo transferindo 54% dos recursos e os congressistas, por meio de emendas, 46%.
Data de 2020 a implantação das emendas do relator-geral, manobra que deu origem ao “orçamento secreto”. As emendas de relator, suspensas pelo STF em 2022, nasceram de manobras parlamentares que jogaram na gaveta do relator-geral do Orçamento emendas propostas por congressistas. Sob o guarda-chuva do relator, que as acomodava sem mencionar autores e destinação, essas emendas perderam inteiramente qualquer mínima transparência.
Este foi o ápice da ocupação do Orçamento pelos congressistas. O exagero na dose determinou a suspensão das emendas de relator e depois as de comissão. Na 5ª feira (10.out), o ministro Flávio Dino, do STF, manteve a suspensão, por considerar insuficientes as explicações fornecidas pelos parlamentares sobre as emendas repassadas em 2020 e 2021.
Embora congressistas de partidos do Centrão e da direita sejam os mais assíduos demandantes de emendas, sua autoria e destinação são pluripartidárias. No Orçamento de 2024, por exemplo, o PT é o campeão de emendas individuais liberadas –o que não quer dizer que tenham sido pagas– num total superior a R$ 600 milhões. Já o PL, do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), contabiliza R$ 370 milhões liberados em emendas individuais.
O presidente Lula (PT), na campanha presidencial de 2022, chegou a classificar o “orçamento secreto” como excrescência. Mas, quando, em fins de 2022, um projeto para acabar com as emendas de relator, na lei orçamentária de 2023, foi à votação na Comissão de Mista de Orçamento (CMO), só uma deputada do Psol, autora do projeto, e outro, do PSB, votaram a favor.
De tudo isso, porém, não seria correto simplesmente abolir as emendas parlamentares. O Orçamento da União não deve ser exclusividade do Executivo, como não é na maioria das democracias adultas e consolidadas.
Mas é urgente e indispensável encontrar fórmulas de definição e execução de emendas capazes de garantir não só a transparência, mas também coibir seu uso apenas como cabo eleitoral de apadrinhados, distorcendo o processo eleitoral e corroendo a democracia. As consequências, como lembrariam o Conselheiro Acácio e o ex-vice presidente Marco Maciel, vêm depois.
Isso será possível, além de enquadrá-las em regras claras para definir onde, como e de que maneira serão aplicadas, com a integração das emendas, de modo estruturado, no conjunto da lei orçamentária discutida e aprovada a cada ano. Os objetivos do Executivo e do Legislativo, na elaboração do Orçamento, devem ser combinados de modo a atender metas de consolidação sustentável da economia e da ampliação do bem-estar da população em geral.
Não se pode confundir dividir, numa democracia, a responsabilidade de definir e executar o Orçamento da União com emparedar o governo, retirando-lhe capacidade de aplicar a política fiscal condizente com a plataforma que lhe deu a vitória eleitoral, e, pior ainda, restringir o instrumento à compra disfarçada de votos em eleições.