A mesma alíquota efetiva do Imposto de Renda que incide sobre os ganhos de milionários é cobrada de assalariados com renda de 4 salários mínimos
Mais e irrefutáveis informações capazes de caracterizar a altíssima regressividade do sistema tributário brasileiro estão, felizmente, vindo à luz do sol, quando, mais uma vez, começam a ser discutidos o fim da absurda isenção de tributos dos lucros e dividendos e a adoção de um imposto mínimo sobre rendas milionárias.
Esse sistema tributário, que opera na contramão do resto do mundo e do que exigiria a racionalidade fiscal, taxa mais quem pode contribuir menos. Essa distorção também distorce a noção de carga tributária, cristalizando o mito que se esconde por trás do fato inegável de que a carga brasileira é alta.
No Brasil, o total da arrecadação em relação ao PIB é de fato alta. Equivale a 33% do PIB, parecida com a da média dos países ricos da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), e bem acima dos emergentes com renda per capita semelhante. Esse total elevado dá passagem ao mito que alimenta o mantra segundo o qual “o brasileiro não aguenta mais pagar tanto imposto”.
Alguns brasileiros, realmente, pagam impostos demais, mas o grupo de renda mais alta paga muito menos do que poderia e deveria. Esta característica é uma jabuticaba que contribui, poderosamente, para a vergonhosa posição do país entre os campeões de desigualdades de renda.
Aqui, é tanta a pobreza e tão enorme a desigualdade que quem ganha R$ 6.000 mensais, apenas pouco mais de 4 vezes o salário mínimo, faz parte dos 15 milhões de adultos, não mais de 10% do total, que fazem parte dos 10% mais ricos.
Não é por coincidência que, diferentemente do que se deveria esperar —e é a realidade de grande parte dos países—, a tributação sobre consumo de bens e serviços suplanta em muito as receitas tributárias com origem em rendas e folha de salários.
Um levantamento (PDF – 3 MB) da IFI (Instituição Fiscal Independente), com dados até 2023, mostram que a tributação do consumo responde por 40% da carga, enquanto ficando as outras duas origens de receita com os 60% restantes, divididos em partes mais ou menos iguais.
É por isso que, segundo o estudo, os mais pobres comprometem pouco mais de 20% de sua renda com tributos indiretos, enquanto os mais ricos entram com menos de 8% de suas rendas.
Quando se fala em carga tributária, e em carga tributária alta ou ainda que “o brasileiro não aguenta mais pagar tanto imposto”, é preciso, portanto, indicar o tipo de pagador de imposto e de brasileiro se está falando.
Reclamar no genérico só ajuda a reforçar as ferozes resistências a uma distribuição mais justa de renda e de tributos. Para um seleto grupo, justamente os que poderiam contribuir mais, o mantra é uma mentira que funciona para manter os privilégios existentes.
Na 3ª feira (29.out.2024), o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) publicou um estudo (PDF – 615 kB) do economista Sérgio Gobetti, pesquisador da instituição e reputado especialista em questões fiscais, com dados atualizados —e espantosos— sobre a baixa taxação efetiva dos cidadãos das faixas mais altas de renda.
Pela nota técnica publicada, fica-se sabendo, por exemplo, que o exclusivo grupo de 15.000 cidadãos, que representa uma ínfima parcela de 0,1% da população adulta brasileira, com pelo menos R$ 8 milhões de renda anual (quase R$ 700 mil mensais), e, em média, rendimentos de R$ 26 milhões anuais, é tributado na mesma alíquota efetiva de 13% que taxa salários de R$ 72.000 anuais (R$ 6.000 mensais).
Alega-se, na defesa da não tributação de lucros e dividendos ou da recusa ao imposto mínimo de milionários, que a taxação de empresas já é muito alta no Brasil. Argumenta-se que as alíquotas elevadas incidentes sobre os lucros na pessoa jurídica compensam, justamente, a isenção aos acionistas, na pessoa física. Finalmente, consideram que taxar lucros da empresa e também dividendos de acionistas configuraria dupla tributação.
São mais argumentos sem base na realidade e nas práticas contábeis e tributárias adotadas mundo afora. A nota técnica de Gobetti prova, com detalhes e números bem apurados, que, se a taxação nominal das empresas é alta –sem dúvida entre as mais altas na comparação com outros países– a alíquota efetiva média incidente é baixa, até quando comparada com a dos países da OCDE.
A tributação nominal de lucros e CSLL sobre empresas financeiras chega a 45%, enquanto para não financeiras vai a 34%. As alíquotas efetivas, no entanto, depois de deduções, abatimentos, isenções, outros benefícios fiscais e aproveitamento de brechas na legislação caem para 30%, no caso das empresas financeiras e para 22%, para as não financeiras.
Também não é verdade que os acionistas sejam taxados duas vezes com base no mesmo fato gerador —tributação de lucros na pessoa jurídica e dividendos na pessoa física. Em qualquer legislação tributária, esses entes são distintos e, além disso, inúmeros estudos mostram que nem toda taxação do lucro da empresa recai sobre o acionista. Parte da tributação acaba transferida para os trabalhadores e para os preços no mercado.
Em sua nota técnica, Gobetti elabora um minucioso exercício para determinar o ônus da tributação dos lucros das empresas que recairia sobre os acionistas. Na hipótese extrema de que o ônus tributário sobre os lucros da pessoa jurídica seja inteiramente imputado ao acionista pessoa física, nos casos de empresas nos regimes tributários de lucro real e lucro presumido, a tributação sobre a renda, na média, não passa de 14%, sendo pouco mais da metade, para as empresas do Simples Nacional. “Este é um patamar muito baixo em perspectiva internacional”, escreve o economista em seu estudo.
O resumo dessa numeralhada toda é que tem muito brasileiro —e, mais diretamente, entre os milionários — que, sim, não só pode como deveria aguentar mais impostos.