Especialistas explicam que Imposto Seletivo desigual não alcançaria o resultado de frear o consumo abusivo de álcool
O Brasil está em processo de rediscussão de impostos e encargos com a regulamentação da reforma tributária. A indústria de bebidas alcoólicas é uma das que deve receber uma taxação nova, o IS (Imposto Seletivo). Especialistas dizem que, a depender do modelo escolhido pelos congressistas para o IS, é possível dar isonomia à tributação do setor.
A equidade tributária é importante, segundo eles, uma vez que todas as bebidas alcoólicas possuem a mesma substância psicoativa, o etanol. O IS foi criado para promover o controle do consumo de itens potencialmente danosos à saúde ou ao meio ambiente, como forma de se combater a externalidade negativa desses produtos. Dessa forma, os analistas acreditam que todas as bebidas alcoólicas devem ser tributadas de forma igualitária.
O PLP (Projeto de Lei Complementar) 68 de 2024, que regulamenta a reforma tributária e trata dessa cobrança, dentre diversos outros temas, está em tramitação no Senado Federal, depois da aprovação em julho deste ano na Câmara dos Deputados. Eis a íntegra (PDF – 1,6 Mb).
O setor de bebidas destiladas acredita que a versão inicial do projeto, apresentada pelo Executivo em abril de 2024 ao Congresso Nacional, é a mais justa. O imposto híbrido proposto no texto unia a alíquota proporcional ao valor da bebida (ad valorem) a outra determinada a partir da multiplicação do teor alcoólico pelo volume dos produtos –que seria a ad rem, nesse formato. Esta última alíquota resultaria em uma taxação sobre a quantidade de álcool puro de cada produto, considerando seu recipiente, conforme a indústria.
Essa proposta inicial foi alterada pelos congressistas na Câmara dos Deputados. Com a mudança, as alíquotas ad valorem poderão ser progressivas de acordo com o teor alcoólico e, também, poderão ser específicas por categoria de produto.
Para os produtores de destilados, a alteração pode fazer com que o Imposto Seletivo perca sua função de coibir o consumo nocivo de álcool, uma vez que isso favorecerá produtos de baixo teor alcoólico muito consumidos. Além disso, avaliam, a mudança também pode causar desequilíbrio concorrencial entre os segmentos do setor de bebidas alcoólicas.
Para o psiquiatra e comunicador Jairo Bouer, o impacto do consumo na saúde da população depende não do tipo da bebida, mas sim da frequência e quantidade de álcool ingerida.
“O que existe é a quantidade de álcool puro consumido. Se o indivíduo ‘A’ tomar 6 latas de cerveja e o indivíduo ‘B’ tomar 2 doses de destilado, o ‘A’ consumiu 3 vezes mais álcool que o ‘B’. O que define a ‘força’ é a quantidade de bebida alcoólica ingerida, não o tipo. Não há bebidas que deixam uma pessoa mais embriagada que outras”, disse Bouer.
A fim de entender como a isonomia tributária pode contribuir para o desenvolvimento responsável do setor de bebidas alcoólicas e para o controle do consumo, o Poder360 consultou especialistas em saúde e economia, além de empresários da indústria.
Leia o que dizem.
Diferença está na dose
A definição do que é consumo moderado e exagerado está na quantidade e na frequência, reforça o psiquiatra Jairo Bouer. Independentemente do produto consumido, o que afeta a saúde das pessoas é a medida de álcool ingerida, destaca. “A questão está muito mais relacionada ao etanol absorvido do que ao tipo de bebida”, afirmou Bouer.
O médico explica que existem limites do que é considerado beber com moderação. O NIAAA (Instituto Nacional sobre Abuso de Álcool e Alcoolismo dos EUA, da sigla em inglês), uma das instituições referência no tema no mundo, define como moderado o consumo de até uma dose de álcool (14 g) por dia para mulheres e duas para homens, conforme a cartilha “Rethinking Drinking – Alcohol and Your Health”, atualizada em 2024. O médico pontua também que é preciso haver intervalos entre o consumo.
“Se alguém bebe todos os dias e não consegue ficar um único dia sem consumir álcool, ou, quando bebe, ingere grandes quantidades de uma só vez, isso pode indicar um padrão problemático de consumo”, disse.
Uma taça de vinho de 150 ml com 12% de teor alcoólico, uma lata de cerveja de 350 ml com 5% de teor alcoólico e uma dose de destilado de 40 ml com 40% de teor alcoólico possuem, igualmente, uma dose de álcool puro (14 g) em suas composições, de acordo com o movimento Doses Certas, apoiado pela indústria.
O psiquiatra alerta que o chamado “episódio de bebedeira pesada”, como as entidades de saúde nomeiam as situações de consumo abusivo em um intervalo curto de tempo, também independe do tipo de bebida escolhida.
Conforme o NIAAA, a ingestão de 4 doses para mulheres e 5 doses para homens em um intervalo de 2 horas já configura esse tipo de consumo abusivo, o chamado “beber pesado” pela entidade de saúde.
Para evitar situações desse tipo, Bouer reforça que é importante haver uma educação e conscientização sobre o consumo consciente de álcool.
Leia mais sobre o consumo de álcool no infográfico.
Imposto Seletivo não será eficaz com tributação desigual
Para o economista e consultor da GO Associados, Murilo Ferreira, a criação de um Imposto Seletivo com alíquota ad valorem gradativa por categoria de produto e teor alcoólico, como o aprovado na Câmara, não será eficaz para inibir a ingestão de álcool no Brasil.
Ele explica que há “uma falsa discussão entre bebidas de ‘teor alcoólico baixo’ e ‘teor alcoólico alto’”, mas essa é, na realidade, apenas a concentração diluída da substância nos produtos. “Se o objetivo é desestimular o consumo de bebidas alcoólicas, uma tributação desigual não atingirá o agente causador do problema, que é o álcool em si, independentemente de estar presente na cerveja, na cachaça ou em outras bebidas”, disse.
Ferreira reforça que a forma como a tributação é feita faz toda a diferença para que o efeito desejado com o IS seja alcançado. Ele defende que o impacto do Imposto Seletivo só será possível se forem taxados igualmente todos os produtos que contenham a mesma substância.
“Uma tributação favorecendo bebidas com teor alcoólico menor, mas que da mesma forma contêm álcool, resultaria em um impacto menor na redução do consumo e na modificação do comportamento dos consumidores no Brasil.”
O economista pontua que o consumo é muito ligado ao hábito das pessoas. Isso é confirmado no estudo “A contribuição dos tipos de bebidas alcoólicas para o consumo, uso abusivo de álcool e danos relacionados ao álcool: uma comparação entre 5 países”, publicado na revista científica inglesa Substance Use & Misuse, em 2021.
A pesquisa revisou dados coletados no Brasil, na Bélgica, nos EUA, na China e na África do Sul. Em cada local, diferentes tipos de bebida –cerveja, vinho ou destilado– foram responsáveis por episódios de consumo abusivo, seguindo características de consumo regional próprias.
O levantamento aponta que não houve um único tipo de bebida que estivesse mais intimamente associado a problemas relacionadas ao álcool em todo o mundo. O estudo sugere que políticas de prevenção direcionados ao consumo específico de bebidas precisam ser adaptadas ao país ou à região onde serão implementadas. Outra sugestão foi taxar o setor com base no volume de álcool consumido.
Taxação não deve ser diferente para a mesma quantidade de álcool
Também consultor da GO Associados e economista, Geraldo Biasotto faz um alerta sobre o texto do PLP 68 de 2024.
“A versão aprovada pela Câmara, e que está no Senado, permite que a ad valorem (alíquota sobre o valor do produto) discrimine diferentes categorias de produtos. Dessa forma, seria possível aplicar uma alíquota de 40% para o uísque e 5% para a cerveja, por exemplo. Isso é problemático pois, ao final, pode-se tributar uma quantidade menor de álcool total na cerveja em comparação com o mesmo volume de álcool presente no uísque”, disse, fazendo uma comparação hipotética.
Para o economista, essa diferença não é adequada se o objetivo do tributo é combater o consumo de álcool. Ele destaca que a isonomia tributária é importante para evitar a distorção na cobrança entre os diferentes tipos de bebidas.
É preciso tratar produtos iguais de maneira igual
O presidente da ABBD (Associação Brasileira de Bebidas Destiladas), Eduardo Cidade, diz que a regulamentação da reforma, em debate no Congresso, tem o poder de corrigir as distorções tributárias que acompanham o setor há anos e equalizar o mercado. Mas isso dependerá do modelo adotado.
Para ele, a versão inicial do PLP 68 de 2024, feita pelo Executivo, tem uma proposta mais equânime em relação ao texto aprovado pelos deputados. Isso porque o texto do Planalto não fazia diferenciação por categoria, não abria brecha para basear a taxação apenas no teor alcoólico e direcionava para a criação de um imposto considerando o álcool puro, sem favorecer ou prejudicar categorias específicas.
“Nós acreditamos que o proposto pelo Executivo, se aplicadas alíquotas iguais para todas as bebidas alcoólicas, traria isonomia para o setor de bebidas alcoólicas”, afirmou.
Cidade também destacou que uma isonomia tributária evitaria que os cofres públicos tenham um gap de arrecadação, deixando de receber pelo álcool presente em algumas bebidas muito consumidas. “A proposta do Imposto Seletivo não é focada na arrecadação. Mas é preciso entender que essa diferenciação pode, sim, resultar em uma perda significativa na arrecadação desse tributo. Precisamos tratar produtos iguais de forma igual”, disse.
O presidente da ABBD explica que outro possível efeito da reforma sobre o setor é no combate à venda de bebidas falsificadas, contrabandeadas ou adulteradas. Cidade citou o estudo da Euromonitor International, de 2024, que mostra que quase 30% do mercado de destilados no Brasil é ilegal. Ele destacou que, sensíveis aos altos preços, consumidores tendem a buscar alternativas mais em conta no mercado irregular.
Distorção tributária pode prejudicar indústria brasileira
O presidente do Ibrac (Instituto Brasileiro da Cachaça), Carlos Lima, diz que uma reforma tributária que faça distinção na cobrança de impostos por categoria de bebida e teor alcoólico pode prejudicar o setor produtivo de cachaça de forma significativa.
Feito de cana-de-açúcar, o produto de origem nacional, que representa menos de 10% do consumo de bebidas alcoólicas no país, segundo o Ibrac, sairia perdendo. Isso afetaria as 1.217 cachaçarias existentes pelo país –registradas pelo Ministério da Agricultura e Pecuária. Muitas são de pequenos e médios produtores.
“Uma taxação excessiva pode resultar no fechamento de indústrias e fábricas, além do aumento da clandestinidade e da informalidade”, disse.
Lima também defende o modelo de tributação híbrido da proposta original do Executivo, considerando o valor dos produtos e a quantidade de álcool puro das bebidas, uma vez que todas as bebidas alcoólicas têm o etanol como base.
“Esse modelo seria mais equilibrado: o ad valorem apenas considerando o valor e a alíquota específica (ad rem) levando em conta a quantidade de álcool puro, independentemente do tipo de bebida”, afirmou.
O presidente do Ibrac destaca ainda que a alteração feita pela Câmara dos Deputados distorce o princípio que norteia a aplicação e a lógica de uma tributação ad valorem.
“A alíquota ad valorem consiste na aplicação de um percentual sobre o valor do produto. A proposta da Câmara prevê que essa alíquota possa ser diferenciada por categoria e, ainda, progressiva em função do teor alcoólico. No entanto, alíquotas ad valorem não deveriam considerar outros atributos que não o valor dos bens. A consideração de outros atributos, no caso da alteração aprovada (o teor alcoólico), é típica da tributação ad rem”, defende.
Lima explica que todas as bebidas contêm a mesma substância psicoativa, o etanol. “Vale ainda lembrar que uma lata de cerveja, uma taça de vinho, uma dose de cachaça ou destilado têm a mesma quantidade de álcool puro. Além disso, não existe uma bebida da moderação e, sim, a prática da moderação”, disse.
Este conteúdo foi pago pela ABBD (Associação Brasileira de Bebidas Destiladas) e pelo Ibrac (Instituto Brasileiro da Cachaça).