Além da casmurrice: um olhar ao preconceito e a mentira de hoje.

A obra “Dom Casmurro”, do fantástico escritor Machado de Assis atravessou séculos impondo aos seus leitores uma dúvida: Capitu traiu Bentinho? O romance realista foi publicado em 1899, em uma época em que havíamos passado por algumas transformações como a “Lei Áurea” e a Proclamação da República. Embora seja uma obra publicada sob o manto da Escola Literária Realismo, uma oposição à escola anterior (Romantismo), o romance ainda busca a paixão para desencadear o adultério como um dos elementos presentes para alavancar o enredo. Porém, há muito mais além da questão da traição para se contemplar e analisar nesta vasta obra literária composta por um dos mais geniais escritores do mundo.

Machado de Assis nasceu no morro carioca do Livramento, filho de um pintor e de uma açoriana, perdeu a mãe muito cedo e aos 15 anos publicou o seu primeiro livro. Estudou como pôde, porque sem recursos procurou na leitura seu triunfo (os alunos me perguntam, por diversas vezes, com toda a dificuldade que passara: sem luz elétrica, gago, epilético, convulsões constantes, conseguira o pódio. Leu muito, em diversas línguas e sem a ajuda da aclamada internet), tornou-se nosso representante maior no mundo da escrita (ainda não acredito em Paulo Coelho) e foi o primeiro e eterno presidente da ABL (Academia Brasileira de Letras). Foi funcionário do já consagrado escritor José de Alencar, como tipógrafo, e atingiu ao Ministério quando a República chegara. Apesar de ser contestado pelo seu não envolvimento diante das causas abolicionistas (Machado era negro), o escritor carioca foi um violento crítico da sociedade da época, especificamente da Igreja. Mas há marcas em algumas de suas obras criticando o racismo. Um escritor genial, atemporal. Embora cause aversão em alguns, Machado de Assis foi brilhante, um verdadeiro bruxo que sobreviveu e se consagrou em duas Escolas Literárias distintas: o Romantismo e o Realismo.

Todavia, a dúvida sobre a traição de Capitu estimula aos mais velhos e se insere ao diálogo juvenil. Na escola, quando falamos em Machado de Assis, o romance realista “Dom Casmurro” ganha os argumentos dos alunos e perpassa por discursos feministas, antirracistas e inquisitórios. A casmurrice de Bentinho e um certo desmemoriar domina a narração de um personagem atormentado pelo passado de um amor avassalador e a dominação eclesial de uma família cercada pela promessa e o medo do pecado; além do patriarcado ser a tônica do tempo e impor restrições à liberdade carregada pela bela jovem Capitu, de olhar oblíquo e ressaca, Bentinho convive com o ciúme e se incomoda com Escobar (amigo intitulado pelo narrador-personagem como amante de Capitu). Não estou forçando o leitor a mudar sua posição, atente-se a quem narra a história e apenas deixa claro o seu posicionamento. Não seria uma crítica machadiana ao patriarcado alicerçado da época (isso acabou?)? Chamo a atenção dos leitores, assim como realizava o eterno presidente da ABL: quantas são as vítimas pelos constantes crimes de feminicídio ainda hoje no Brasil?

Bento Santiago (é esse o nome de Bentinho) é considerado o “Otelo” brasileiro, personagem shakespeariano, que acredita na traição de sua esposa

Desdêmona. Confesso ainda hoje, ao reler constantemente essa genial obra, não ter mais dúvidas sobre a não-traição de Maria Capitolina Santiago (nome de Capitu), embora o que ainda alimente a leitura da obra seja essa indefinição transmitida feito uma lenda urbana.

É importante que apesar de navegarmos por esse universo realista machadiano, temos o dever, principalmente como professores de Literatura ou leitores, o contextualizar da obra, seja proporcionando o debate sobre temas ainda polêmicos e abafados por muitos como: feminicídio; além dos questionamentos patriarcais diante de uma mulher como Capitu. Faz-se necessário proporcionar elementos para que o discente pense, analise e forme seus conceitos sobre diversas temáticas pertinentes em nossa sociedade, e consiga, através da leitura, através do conhecimento, através da Literatura, desprender-se do preconceito alimentado pelas notícias inverídicas, fomentadoras da discórdia e atípicas ao nosso dever ético e cidadão. O ENEM cobra isso, contudo a vida impõe impostos muito mais caros aos que insistem na mentira e no preconceito.

Por: Sérgio Sant’Anna

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