Discussão sobre o Orçamento não é nova e sempre permeou o debate Legislativo, escreve Eduardo Cunha
Muitos articulistas querem fazer comparações, como se as nossas emendas parlamentares fossem um abuso do Legislativo, em detrimento do Executivo, comparadas com os demais orçamentos de países desenvolvidos.
Isso tudo é falácia, pois o cerne da questão está no nosso modelo político e de tratamento do Orçamento.
É desonesto intelectualmente comparar os modelos de países desenvolvidos, seja pela adoção do parlamentarismo, seja pela execução compulsória do orçamento, seja pela força que o orçamento tem nesses países, onde os seus congressistas, em muitos dos casos, passam a maior parte do tempo legislando com a sua discussão.
Países que adotam o parlamentarismo, já concedem o poder total ao Parlamento, sendo que a rejeição do orçamento, equivale a um voto de desconfiança, que derruba o governo.
Nos Estados Unidos, o poder do Parlamento é de tal maneira, que cansamos de assistir ao famoso “shutdown”, onde o país para, inclusive sem poder pagar os salários dos funcionários.
A grande diferença dos países desenvolvidos em relação ao nosso é que os seus orçamentos são totalmente impositivos, ou seja, o que é aprovado pelo respectivo Congresso tem de ser efetivamente realizado.
Por aqui, o nosso orçamento é de “faz de conta”, aprovado ao apagar das luzes do ano legislativo, sendo simplesmente autorizativo, onde se inventam receitas que não vão ocorrer, para aumentarem as despesas, sendo que depois ao longo do ano, são obrigados a contingenciarem, para cumprimento da lei de Responsabilidade Fiscal, cortando justamente as despesas negociadas para aprovação pelo Congresso, ou de origem de propostas da oposição ao governo do momento.
Isso sem contar que o governo, por meio de medidas provisórias, abre créditos suplementares, remanejando as verbas de uma aplicação aprovada na lei orçamentária, para onde o governo quer realmente gastar.
As medidas provisórias têm eficácia imediata e, tão logo editadas, alteram o orçamento, deixando o governo com o poder de fazer o que quer, à revelia de autorização legislativa.
De nada adiantaria derrubar ou rejeitar a medida provisória, pois os recursos previstos na sua edição já terão sido gastos durante a sua vigência.
No modelo parlamentarista, os partidos que fazem parte do governo aprovam o orçamento incluindo as prioridades que cabem a cada partido administrar.
Nos Estados Unidos, regime presidencialista, que tem somente dois partidos, o do governo e da oposição, a luta é ainda mais clara e objetiva, tendo os congressistas um poder muito maior que o atual modelo brasileiro.
Aqui no nosso orçamento faz-de-conta, o governo aprova um orçamento fictício, incluindo receitas, como a tal situação do voto de qualidade do Carf (Conselho de Administração de Recursos Fiscais), onde disseram que isso traria bilhões de reais de receita, mas que na verdade tudo foi feito tão somente para forçar a Petrobras a fazer um acordo sobre determinada autuação fiscal, que de fato já foi feito, mas no resto ficou a receita estimada bem abaixo do previsto, obrigando-se a ter de contingenciar bilhões de reais, para não se estourar o arcabouço fiscal, outro exemplo de incompetência do governo.
Erro técnico
Aliás, a ânsia de resolverem o perdão do deficit do ano de 2023 levou o atual governo a cometer um tremendo erro técnico. Ao acabar com o teto de gastos, ordenamento constitucional que limitava os gastos na correção inflacionária do ano anterior, limitando com isso a vinculação constitucional de saúde e educação, simplesmente remeteu para a lei complementar a competência para o controle de gastos, naquilo que se chamou de arcabouço fiscal.
Só que ao fazer isso, esse controle de gastos não pode interferir sobre as vinculações em saúde e educação, gerando a seguinte situação inusitada: pode gastar mais que a inflação em tudo, limitada a 70% do crescimento da receita, com o limite de 2,5% de incremento sobre o Orçamento do ano anterior.
Isso trouxe a seguinte situação de obrigar ao crescimento de despesa de saúde e educação, mesmo que não fosse necessário, jogando fora toda a capacidade de investimento que o governo queria ter, para o seu empacado PAC (programa de aceleração do crescimento).
Se tivessem aprovado o arcabouço fiscal por emenda constitucional, modificando a do teto de gastos, teriam conseguido alcançar a desvinculação, de que o crescimento da receita tivesse que alcançar o crescimento de gastos em saúde e educação.
Isso foi por mera incompetência da equipe da Fazenda, criando uma situação absurda, de que tem de entrar se apropriando das emendas parlamentares, para que possam gerar capacidade de investimentos no seu famigerado PAC.
Sem contar que, no chamado arcabouço fiscal, o governo ficou com um cheque em branco, pelo excesso de exceções, que praticamente o liberou para gastar sem origem de recursos, a maior parte das suas intenções políticas no nosso orçamento.
Aí volta ao cerne da questão sobre a propriedade do orçamento, se do Executivo que o propõe, ou do Legislativo que o aprova.
Em 2007, no segundo governo de Lula, veio a discussão de uma emenda constitucional, aprovada pelo Senado, de autoria do então senador Antônio Carlos Magalhães, que estabelecia a impositividade de todo o orçamento do país, a exemplo do que ocorre com os países mais desenvolvidos, pertencentes à OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
Execução compulsória
Ou seja, aquilo que o Congresso aprovasse seria de execução compulsória.
Cada despesa é atrelada a uma receita específica, sendo a frustração da receita compensada pela anulação da respectiva despesa, na forma proporcional da redução da receita. Não são necessários contingenciamentos.
Esse debate chegou à Câmara, onde o que ocorria era exatamente que o orçamento continha emendas parlamentares individuais, de bancadas e de comissões, incorporadas ao orçamento, mas nunca liberadas, salvo para os aliados do governo, quando votavam os absurdos que o governo queria votar.
As emendas individuais sempre existiram e nunca se teve essa discussão de transparência. Elas apenas não eram liberadas pelo governo.
As emendas de bancada sempre foram incluídas dessa forma, sendo em cada Estado um número específico para cada bancada, além de uma emenda para cada um dos três senadores.
As emendas de comissão sempre existiram, aprovadas em votação do plenário de cada comissão, que propunham um determinado valor em cada emenda, depois revisada pelo relator geral, para adequação da disponibilidade orçamentária.
Nem as emendas individuais, nem as de comissão, nem as de bancada eram liberadas pelo governo, salvo interesse político de determinada situação, geralmente em votações no Congresso.
Não havia também qualquer questionamento sobre a transparência dessas emendas, mesmo que depois de compra de votos, fossem liberadas pelo governo.
Em resumo, as mesmas emendas sempre existiram, mas eram um favor que o governo fazia ao liberar a sua execução, ou simplesmente era um instrumento de compra de votos.
Cansei de assistir a votações na Câmara, durante os governos do PT, que se podia ganhar ou perder por um voto, onde se esperava algum deputado para votar, às vezes por mais de uma hora, em negociação em algum lugar, que terminava sempre em empenho da sua emenda individual, de bancada ou de comissão.
Essa pouca-vergonha levou à aprovação no Senado da impositividade do orçamento como um todo, e certamente essa seria a regra correta de se adotar no nosso país.
Ocorre que, usando justamente a compra de voto por liberação de emendas parlamentares, o governo da época, o mesmo de hoje, impediu a aprovação na Câmara dessa emenda constitucional do Senado, que acabaria com essa prática.
Só que esse sentimento de revolta, com a utilização das emendas para compra de votos a favor do governo, estava cada dia mais presente entre os congressistas.
A gente ia para a campanha eleitoral, prometia uma emenda para atender a uma necessidade de um município, mas não podíamos cumprir a promessa, salvo se nos submetêssemos a apoiar um governo com o qual não concordávamos.
Se não conseguíamos liberar a nossa emenda, um outro deputado que votasse com o governo ia ao nosso reduto eleitoral, liberava a emenda e tomava o nosso eleitorado.
Era uma sinuca de bico: ou votávamos com o governo para manter o apoio da nossa base, ou perdíamos os votos para um outro deputado que votasse com o governo.
Isso sem contar que deputados da base do governo usavam, além das emendas, os recursos discricionários do Executivo, para carimbarem como seus, nos tomando prefeitos, vereadores, deputados estaduais, etc., corrompendo o processo democrático, usando o orçamento para eleger quem o governo quisesse para o Congresso.
Não vi nesse momento nenhuma decisão judicial visando à transparência do orçamento, à preservação da democracia representativa, aviltada pela utilização perversa do orçamento pelos governos do PT.
Também não vi artigos da imprensa denunciando essa compra de votos e muitos dos absurdos eleitorais feitos com essa utilização indevida do orçamento.
A revolta era tanta que isso foi para a agenda de campanha dos candidatos a Presidente da Câmara, já que a revolta existente no Congresso, principalmente na Câmara, levava à certeza de que teríamos de ter Presidentes independentes do Executivo, para evitar esse massacre que o PT fazia nas bases dos deputados, usando o orçamento.
Dessa forma, já na eleição de 2013 para a Presidência da Câmara, onde Henrique Alves, do PMDB, sucedeu a Marco Maia do PT, o grande mote da sua campanha vitoriosa foi a impositividade das emendas individuais, onde prometeu constitucionalizar a impositividade para essas emendas.
De fato, Henrique Alves saiu vitorioso na campanha em função disso, iniciou esse processo, mas não conseguiu vencer a força do PT de tentar impedir essa aprovação, mas adiantou bem o processo, deixando a bola na cara do gol para o Presidente seguinte a ele.
Por acaso, o presidente seguinte a ele seria eu, que fiz a minha campanha justamente com o mote de independência do Legislativo, prometendo concluir a aprovação dessa emenda constitucional, assim como aprovar outra emenda constitucional para tornar impositivas as emendas de bancada.
Certamente isso foi decisivo para a minha vitória, pois a revolta dos deputados depois da eleição de 2014, enfrentando os deputados do PT, usando o orçamento para lhes tomarem votos em muitos municípios, fez amadurecer a consciência de que era impossível conviver com esse estado de coisas, que deformava a democracia representativa, onde o orçamento era usado para corromper as bases eleitorais de deputados.
Uma vez eleito, na minha primeira semana de Presidência, aprovei a emenda constitucional de impositividade das emendas individuais do orçamento, a emenda constitucional 86 de 2015, vinculando 1,2% da Receita Corrente Líquida, além de iniciar a tramitação da impositividade das emendas de bancadas, que acabaram definitivamente aprovadas somente em 2019, pela emenda constitucional 100 de 2019, com 1% da Receita Corrente Líquida.
As emendas de Comissão nunca foram constitucionalizadas, apenas previstas na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias), sempre ficando dentro da margem utilizada pelo governo para a compra de votos no Congresso, mas como o governo quer diminuir o preço a ser pago para esse apoio, prefere tentar discutir o tema através do Judiciário, já que não tem votos para mudar essa situação no Congresso.
Da mesma forma, as emendas de relator, previstas somente na LDO, foram derrubadas pelo governo no Judiciário, ainda na transição de governo em 2022, que terminaram em um acordo, para que a metade da previsão orçamentária dessas emendas fosse incorporada às emendas individuais, tendo sido alterada a constituição para essa finalidade, na mesma emenda constitucional que acabou com o teto de gastos, a emenda constitucional 156 de 2022.
O governo tanto queria o fim do teto de gastos, para que pudesse gastar à vontade em seu novo período de governo, que aceitou esse acordo, mas logo em seguida sentiu falta de mais dinheiro para gastar ainda mais, usando o Judiciário para tentar forçar um acordo para reduzir as emendas dos congressistas.
Todo o discurso de falta de transparência é mera balela para justificar a intervenção indevida no Poder Legislativo.
Não existe falta de transparência, pois as emendas individuais são elencadas por cada deputado ou senador. As emendas de bancada são aprovadas pela bancada de cada Estado, e as emendas de comissão são votadas pelo plenário da respectiva comissão, além de obviamente serem votadas pelo plenário do Congresso.
O que tanto falam pejorativamente de emenda Pix trata-se simplesmente de transferência dos valores da emenda no momento do respectivo empenho.
O que acontecia antes? Eram duas guerras, a primeira para empenhar a emenda, a segunda para pagarem a emenda.
Na emenda constitucional da impositividade das emendas também se fez a previsão da obrigatoriedade de pagamento das emendas. Antes o governo negociava a compra de votos para empenhar, depois o deputado ou o senador tinha de negociar uma segunda vez, para que houvesse o pagamento da emenda.
Em resumo, o governo comprava duas vezes o mesmo voto, usando apenas uma emenda. Era o 2 em 1 do governo, uma verdadeira pouca-vergonha.
O que são as emendas Pix? Simplesmente o governo empenha e paga a emenda, deixando o recurso em conta específica da prefeitura beneficiada, que pode contratar e executar o projeto referente à emenda.
Além disso, a prefeitura evita perder o poder de realização, ao se beneficiar dos juros da aplicação, pois se o governo pagar um ano depois o mesmo valor da emenda, o projeto nunca será realizado, pois faltará dinheiro para isso.
Em resumo, para responder aos críticos da participação do Legislativo no nosso orçamento, o que seria necessário discutir seria, em primeiro lugar, a impositividade de todo o orçamento do país, sem possibilidade de alteração por medidas provisórias.
Façam isso e não serão mais necessárias quaisquer emendas parlamentares, pois elas já virão dentro do orçamento aprovado.
Também a adoção do parlamentarismo, ou do semipresidencialismo, solucionaria o problema, acabando-se com qualquer emenda parlamentar.
Não dá é para comparar laranja com banana, como querem fazer alguns articulistas.
Na verdade, o que estamos precisando mesmo é de uma nova Constituição. A atual já deu o que tinha de dar.
Até porque quem deveria interpretá-la tem preferido reescrevê-la a cada momento.