“Queimem Gaza agora, nada menos que isso!” Quando o vice-presidente do Parlamento israelense, o Knesset, postou este comentário no X (antigo Twitter) em novembro, a plataforma bloqueou sua conta, e pediu a ele para apagar a postagem.
Nissim Vaturi fez o que eles pediram, e sua conta foi reativada desde então, mas ele não se desculpou. O comentário dele é uma das muitas declarações controversas que foram feitas por alguns israelenses de alto escalão enquanto as forças armadas do país realizam ataques aéreos e operações terrestres em Gaza, em resposta ao ataque mortal do Hamas a Israel em 7 de outubro.
No dia do ataque, ele havia postado: “Agora todos nós temos um objetivo comum — eliminar a Faixa de Gaza da face da Terra.”
Esta postagem, que ainda está disponível no X, foi citada no processo aberto pela África do Sul contra Israel na Corte Internacional de Justiça (CIJ), no qual o país africano alega que Israel está cometendo genocídio contra os palestinos na guerra em Gaza. Israel classificou o processo como “totalmente infundado”, e baseado em “alegações tendenciosas e falsas”.
Como parte de uma decisão provisória emitida em janeiro, a CIJ determinou que Israel deve evitar declarações públicas que incitem genocídio.
Embora o tribunal não tenha o poder de fazer cumprir a decisão, Israel concordou em enviar um relatório detalhando as medidas que tomou para investigar e julgar possíveis casos de incitação.
O tribunal confirmou que o relatório foi recebido em fevereiro, mas não tornou público seu conteúdo.
Alguns especialistas jurídicos acreditam que Israel não está fazendo o suficiente para investigar potenciais casos. “Israelenses que incitam genocídio ou usam retórica genocida são imunes a processos”, diz Michael Sfard, advogado israelense de direitos humanos.
Provar incitação ao genocídio, que é um crime no âmbito do direito internacional e israelense, é difícil. O genocídio é definido como atos destinados a destruir, por completo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.
Mas distinguir entre incitar genocídio e incitar violência ou racismo — e o que pode ser considerado liberdade de expressão — pode ser complexo.
A BBC analisou vários pronunciamentos feitos desde a determinação da CIJ para ver se poderiam ter descumprido a decisão, e consultou especialistas jurídicos para sua avaliação.
E embora esta decisão tenha sido direcionada a Israel, também analisamos a linguagem usada por algumas autoridades do Hamas que fizeram discursos sobre repetir seu ataque de 7 de outubro.
A Law for Palestine, uma organização de direitos humanos em defesa da Palestina, composta por uma rede de especialistas e pesquisadores ao redor do mundo que monitoram o conflito, analisou casos em que acredita que autoridades israelenses e outras figuras públicas incitaram o genocídio.
A lista da organização inclui algumas declarações do ministro da Segurança Nacional de Israel, Itamar Ben-Gvir, de direita radical.
Ben-Gvir tem defendido uma política para encorajar os palestinos a deixar Gaza, dizendo que os israelenses devem se estabelecer lá.
Ele lidera um partido ultranacionalista que é amplamente criticado por defender políticas racialmente discriminatórias e antiárabes. E já foi condenado por um tribunal israelense — antes de entrar no governo — por incitar o racismo e apoiar o terrorismo.
Dois dias após a decisão da CIJ em janeiro, ele defendeu uma política para encorajar os palestinos a deixar Gaza, e substituí-los por colonos israelenses. Ele disse que para evitar que o ataque do Hamas a Israel se repita, “precisamos voltar para casa e controlar o território [Gaza]… encorajando a migração e aplicando pena de morte a terroristas”, propondo que qualquer emigração seja voluntária.
“Consideramos a invocação ao deslocamento da população de Gaza como parte da limpeza étnica que está em andamento em Gaza”, diz Ihsan Adel, fundador da Law for Palestine. Ele acredita que esses apelos devem ser considerados incitação ao genocídio, e que o genocídio está acontecendo — acusação que Israel nega.
Mas nem todos concordam com sua avaliação. “Definitivamente não vou defender tais declarações, mas elas não chegam ao nível de genocídio”, afirma Anne Herzberg, consultora jurídica da ONG Monitor, que acompanha a atividade de ONGs internacionais de uma perspectiva de defesa de Israel.
Nem Ben-Gvir nem Vaturi responderam aos pedidos de comentários feitos pela BBC.
A relação entre o que os políticos dizem e o que os soldados israelenses dizem foi uma parte central do processo da África do Sul na CIJ.
Em um vídeo publicado no YouTube no fim de 2023, um grupo de soldados das Forças de Defesa de Israel (FDI) pode ser ouvido cantando: “Ocupem, expulsem e se instalem”. E os soldados gravaram outros vídeos desde a decisão da CIJ em janeiro, zombando e celebrando a destruição de Gaza.
As FDI nos disseram que analisam denúncias de vídeos online e que, se houver suspeita de ato criminoso, a polícia militar investiga — e “em alguns dos casos analisados, conclui-se que a expressão ou comportamento dos soldados na filmagem é inapropriada, e está sendo tratada de acordo”.
Os holofotes também se voltaram para os líderes religiosos de Israel. O rabino Eliyahu Mali chamou atenção após dar uma palestra, em março, durante uma conferência para yeshivas sionistas de Israel — escolas religiosas judaicas com uma forte crença no Estado de Israel.
O rabino Mali é o chefe de uma yeshiva que faz parte de uma rede que recebe financiamento do Ministério da Defesa de Israel. Seus alunos combinam o estudo da Torá com serviço militar.
Ele descreveu a palestra como sendo sobre o “tratamento da população civil em Gaza durante a guerra”.
Um vídeo do evento foi compartilhado online. Depois de citar um judeu erudito do século 12 sobre guerras santas, o rabino Mali disse: “[E se assim for] a regra básica que temos quando estamos lutando em uma guerra de mitzvá, neste caso em Gaza, de acordo com as escrituras: ‘Você não deve deixar uma alma permanecer viva’, a explicação é muito clara — se você não matá-los, eles vão te matar”.
No judaísmo, uma guerra de mitzvá é aquela que inclui a defesa da vida e soberania judaica — e é considerada obrigatória, ao invés de uma de escolha.
Entramos em contato com o rabino Mali, e recebemos uma resposta, enviada em seu nome, dizendo que suas palavras haviam sido “grosseiramente deturpadas por trechos tirados de contexto”.
Afirmava ainda que ele havia explicado qual era a posição nos tempos antigos, mas que havia “deixado bem claro que qualquer um que seguisse o mandamento bíblico hoje, estaria causando danos extremos ao Exército e à nação” — e que, no âmbito da legislação nacional, “é proibido ferir a população civil, desde uma criança até um velho”.
Assistimos à palestra completa e, em algumas ocasiões, ele lembrou os presentes destes pontos, inclusive na conclusão, e também dizendo no início: “Vocês precisam fazer exatamente o que as ordens do Exército dizem”.
No entanto, durante a palestra, ele mencionou especificamente a população de Gaza, dizendo: “Acho que há uma diferença entre a população civil em outros lugares, e a população civil em Gaza”, acrescentando uma alegação infundada de que “de 95% a 98% estão interessados no nosso fim, isso é a maioria, é impressionante”.
Quando um membro do público perguntou sobre bebês, ele respondeu: “O mesmo… A Torá está dizendo: ‘Você não deve deixar uma alma permanecer viva’… Hoje ele é um bebê, amanhã ele é um menino, amanhã ele é um guerreiro”.
Na palestra, o rabino também contou o que disse ao filho, que foi lutar após os ataques de 7 de outubro. Afirmou que ele deveria “matar tudo que se move”. E explicou sua posição acrescentando que o comandante do filho havia dito a ele a mesma coisa, e que ele instruiu o filho a “ouvir as ordens do comandante”.
Mais tarde, ele reiterou que não esperava que os soldados fizessem o que estava estabelecido na Torá. Ele afirmou que se as leis do Estado contradiziam as leis da Torá, era a lei do Estado que deveria ser seguida, e “as leis do Estado só querem matar os terroristas, e não a população civil”.
Eitay Mack, advogado do grupo israelense Tag Meir que faz campanha contra o racismo e a discriminação, diz que pediu à polícia para investigar o rabino por suspeita de incitação à prática de genocídio, violência e terrorismo.
Ele afirma que ainda está esperando para saber se a investigação que solicitou vai ser realizada.
Outra alegação feita pela África do Sul durante a audiência na CIJ foi sobre “mensagens genocidas sendo rotineiramente transmitidas — sem reprimenda ou punição — pela imprensa israelense”.
Em fevereiro, no Channel 14, de direita, o jornalista Yaki Adamker declarou: “Os moradores de Gaza, no que me diz respeito, podem morrer de fome. Não me importo com eles”.
Em abril, o jornalista israelense Yehuda Schlesinger ecoou sentimentos semelhantes no canal mais assistido do país, o Channel 12, dizendo: “Não há inocentes na Faixa de Gaza, não há. Eles votaram no Hamas, eles querem o Hamas”.
Para Anne Herzberg, da ONG Monitor, isso pode mostrar “uma desconcertante falta de empatia pelas pessoas em Gaza e pelo que elas estão passando”, mas “não é uma invocação ao genocídio”.
A BBC entrou em contato com ambas as emissoras, mas não recebeu resposta. Yehuda Schlesinger respondeu, destacando as atrocidades de 7 de outubro.
Quando se trata de saber se as autoridades devem controlar com mais rigor o que é transmitido, o advogado israelense de direitos humanos Michael Sfard adverte que “os reguladores, que são o Estado, precisam garantir que a transmissão pública não seja explorada” por pessoas que fazem comentários provocativos.
Embora a decisão da CIJ para impedir a incitação ao genocídio tenha sido direcionada a Israel, o Hamas também foi acusado de fazer declarações com “intenção genocida”.
“A linguagem aniquilacionista da carta do Hamas é repetida regularmente por seus líderes”, diz Tal Becker, consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores de Israel.
Em 2021, Yahya Sinwar, que acaba de se tornar o líder geral do Hamas, declarou: “Apoiamos a eliminação de Israel por meio da jihad e da luta armada, esta é a nossa doutrina”.
E, mais recentemente, algumas autoridades do Hamas alegaram que querem repetir os ataques de 7 de outubro, durante os quais cerca de 1,2 mil pessoas foram mortas — a maioria civis — e 251 foram feitas reféns.
Em novembro, um membro do gabinete político do Hamas, Ghazi Hamad, afirmou: “Precisamos dar uma lição em Israel, e vamos fazer isso repetidamente”.
Por volta da mesma época, o líder do Hamas no exterior, Khaled Mashaal, disse que 7 de outubro “abriu uma via para eliminar Israel”.
O Hamas não respondeu ao pedido de comentário feito pela BBC.
Muitos querem ver o grupo — que é classificado como uma organização terrorista pelos EUA, Reino Unido, União Europeia e outros países — responsabilizado.
“Está bem claro que eles têm intenção genocida, e ouvimos muito pouco sobre investigar o Hamas, e acho que esta é uma peça que está realmente faltando em todo esse conflito”, diz Anne Herzberg, da ONG Monitor.
A relatora especial da ONU para direitos humanos nos territórios palestinos ocupados, Francesca Albanese — cujas próprias críticas às ações israelenses têm sido fortemente contestadas, sobretudo, em Israel e nos EUA — concorda que os líderes do Hamas devem ser responsabilizados. Mas adverte:
“Ao avaliar o genocídio, deve-se olhar para as palavras ditas pelos líderes, mas também para a capacidade de cometer genocídio, o que o Hamas por si só não parece ter.”
Diferentemente de Israel, o Hamas não pode ser levado à Corte Internacional de Justiça porque não é um Estado. Mas, um órgão diferente, o Tribunal Penal Internacional (TPI), pode responsabilizar indivíduos.
Em maio, o procurador-chefe do TPI solicitou mandados de prisão contra os líderes do Hamas Yahya Sinwar, Mohammed Deif e Ismail Haniyeh por crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Desde então, Haniyeh foi morto no Irã, e Israel diz ter matado Deif em Gaza.
O procurador também solicitou mandados de prisão para o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, e o ministro da Defesa do país, Yoav Gallant.
Tanto o Hamas quanto Israel reagiram com indignação.
Em relação ao que as autoridades israelenses estão fazendo para impedir e julgar pessoas suspeitas de incitar a violência, o procurador-geral do país e o procurador do Estado reconheceram que qualquer declaração que invoque danos intencionais a civis “pode equivaler a um crime, incluindo o crime de incitação”.
Pouco antes da audiência da CIJ em janeiro, eles disseram que vários casos estavam sendo analisados.
Recentemente, no entanto, o jornal israelense Haaretz publicou que o procurador do Estado recomendou que nenhuma investigação criminal fosse aberta contra autoridades públicas importantes, incluindo ministros e membros do Parlamento, que “invocaram danos a civis na Faixa de Gaza”. A decisão final cabe ao procurador-geral.
A BBC entrou em contato com o procurador do Estado de Israel, o comissário de polícia e o Ministério da Justiça para comentar. Apenas o Ministério da Justiça respondeu, dizendo que eles têm que contrabalançar “o direito constitucional à liberdade de expressão… enquanto protegem contra a incitação prejudicial”.
“As autoridades policiais agem constantemente para reduzir os crimes de incitação, e esses esforços foram priorizados pelo procurador-geral de Israel nos últimos meses”, acrescentaram.
E enquanto a CIJ continua trabalhando para emitir uma decisão final sobre o caso, as pessoas continuam morrendo — desde outubro, mais de 40 mil palestinos foram mortos em Gaza, de acordo com o Ministério da Saúde local, administrado pelo Hamas.