Presidente do TCU diz que o governo deveria convocar líderes partidários, empresariais e presidentes dos Poderes para um diálogo amplo como forma de zerar o deficit do país
O presidente do TCU (Tribunal de Contas da União), Bruno Dantas, defendeu que o governo convoque uma grande reunião com líderes partidários, empresariais e presidentes de Poderes para fazer uma repactuação dos gastos públicos do país. Segundo ele, seria uma forma eficiente e consensual de tomar medidas duras, mas com efeito duradouro.
Segundo ele, há espaço para essa revisão. Ele citou ao menos 4 pontos de partida que, somados, podem mexer com mais de R$ 1 trilhão ao ano:
- fraudes em programas sociais;
- revisão de subsídios ineficientes;
- reforma administrativa;
- gastos da previdência.
Segundo Dantas, é necessário atribuir mais responsabilidades ao Congresso, que ampliou seu poder sobre o orçamento, e cobrar de empresários que também façam a sua parte na revisão de benefícios.
“Houve nos últimos 10 anos uma erosão da base tributária nacional. Muitas isenções foram aprovadas em descumprimento à Lei de Responsabilidade Fiscal sem a compensação. O Congresso não pode ser punido por ter votado um projeto irresponsável. O TCU faz alertas, mas não pode punir. Só pune o governo. Precisamos de mecanismos que dividam de maneira mais equânime essa responsabilidade”, disse Bruno Dantas em entrevista ao Poder360.
Assista à íntegra (50min50s):
Bruno Dantas tem 46 anos, está em seu 2º mandato como presidente da corte de contas, e também preside a Organização Internacional de Instituições Superiores de Fiscalização. Antes foi conselheiro no CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e no CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público).
À frente do TCU, Dantas criou a Secex Consenso (Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos), que busca reformular contratos de concessão que não deram certo. Segundo ele, trata-se da principal inovação na administração pública brasileira nas últimas duas décadas.
“Essa secretaria de consenso é talvez a maior boa novidade da administração pública brasileira nos últimos 20 anos. Está conseguindo otimizar esses contratos dentro de uma governança sólida. O cidadão não tem interesse nas multas, mas nos serviços. Se o tribunal consegue fazer o controle e exigir que abram os números e planilhas com o TCU como testemunha que é tudo em bases republicanas, a pergunta que fica é: quem pode ser contra isso, se não quem deseja o atraso?”, disse.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tentou atribuir parte dessas responsabilidades à AGU (Advocacia Geral da União), mas voltou atrás. Bruno diz que, nos próximos 2 anos, esse trabalho pode levar ao investimento privado de mais de R$ 100 bilhões. Mais do que isso: ele acredita que essa iniciativa mudou de vez o perfil dos auditores da corte de contas.
“Sempre digo que auditor é treinado para encontrar problemas. Mas, quando se fala em grandes contratos, é preciso que tenhamos auditores que saibam pensar soluções. Foi o que fizemos. Praticamente todos os acordos foram aprovados por unanimidade. O tribunal tem essa percepção de que é preciso corrigir contratos atrasados”, disse.
Leia trechos da entrevista:
Poder360: O TCU assumiu, em julho, lugar no conselho de auditores da ONU. É a 1ª vez na história que o Brasil está nessa posição. A corte está pronta para fazer essa análise?
Bruno Dantas: O conselho foi instituído 1 ano após a criação das Nações Unidas, com o apoio fundamental do Brasil. Mas nunca teve um brasileiro. O conselho é composto por 3 países representados pela instituição máxima de controle externo. Hoje estão Brasil, França e China. São mandatos de 6 anos. A ONU recebe dos países membros o pagamento de anuidade. O Brasil paga US$ 200 milhões ao ano. São 194 países. É um orçamento de mais de US$ 70 bilhões. Mas nem todo orçamento é auditável. Ficam mais de US$ 40 bilhões. Nos preparamos com intercâmbios em países de larga tradição, como Chile, Portugal e Marrocos. Sucedemos o Chile no conselho. Quando foram escolhidos, disputaram com Serra Leoa e venceram por 97 a 92. Também esperávamos disputa acirrada. Mas todos que desejavam se candidatar, quando sabiam que o candidato era o Brasil, dada a respeitabilidade do TCU e do Itamaraty, iam desistindo. No final, disputaríamos com a Tanzânia que, 2 dias antes da eleição, desistiu. Fomos eleitos por aclamação. E o presidente Lula escreveu cartas aos 193 outros chefes de Estado da ONU. Queremos mostrar que, além de bons diplomatas, temos bons auditores.
Falando das contas brasileiras, o governo bateu recorde de arrecadação no 1º semestre e, ainda assim, a dívida pública subiu para 77,8% do PIB, nível da pandemia. Por que é tão difícil fechar as contas no Brasil?
É fácil fazer um diagnóstico abstrato. Na prática, é mais difícil. É parte de sermos uma democracia pujante. O Executivo recebeu a missão popular de governar o país, mas seu partido tem menos de 20% das cadeiras na Câmara. Reforça a necessidade de um presidencialismo de coalizão. Essa pluralidade por vezes torna difícil alcançar o tão sonhado equilíbrio. Tenho visto um esforço grande da equipe econômica e dos ministros Fernando Haddad e Simone Tebet para alcançar o equilíbrio. Nos últimos 10 anos houve uma erosão da base tributária. Muitas isenções aprovadas e é importante que se diga: em descumprimento da LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), de 2001. O artigo 14 exige que qualquer novo gasto seja compensado com aumento de tributo ou corte de despesa. Infelizmente vem sendo descumprido sistematicamente desde 2015.
Mas quem deveria fiscalizar?
O Executivo tem responsabilidades por lei. O Congresso goza de imunidade pelos seus votos e opiniões. Um parlamentar não pode ser punido porque votou em um projeto irresponsável do ponto de vista fiscal. O TCU faz os alertas, mas não pode punir parlamentares por aprovar um projeto mal estruturado do ponto de vista fiscal. Também não pode punir o Congresso por derrubar um veto que cria um impacto grande. É essa a difícil equação do Executivo. O TCU pune técnicos do Executivo, ministros e eventualmente até o presidente emitindo parecer opinando pela rejeição das contas. A verdade é que precisávamos de mecanismos que distribuíssem de maneira mais equânime a responsabilidade, já que o Congresso adquiriu tanta proeminência sobre o orçamento.
As regras aplicadas ao Executivo deveriam ser aplicadas também ao Legislativo?
Não falaria de responsabilização, punição. Mas o STF vem consolidando uma tese constitucional que me parece acertada. Quando o Congresso aprova um aumento de despesa sem apontar de onde vem a receita, essa lei não é inconstitucional, mas ineficaz até chegar uma nova lei apontando a fonte. Aconteceu no governo Jair Bolsonaro quando o Congresso Nacional derrubou o veto que ampliava a base de recebedores do BPC (Benefício de Prestação Continuada) e teria impacto de R$ 18 bilhões. O ministro Paulo Guedes levou a questão ao TCU e eu fui o relator. Dei uma cautelar desobrigando o governo a aplicar aquela lei enquanto não viesse outra apontando a fonte de receita. Em seguida, a AGU ingressou com ação no STF e o ministro Gilmar Mendes, relator, decidiu usando a mesma tese. Não havia inconstitucionalidade, mas ineficácia até que sobreviesse a fonte de custeio. Na ADIN do governo contra a lei das desonerações dos 17 setores, o ministro Zanin adotou a mesma tese. Há uma construção de jurisprudência fiscalmente responsável.
O governo, no caso da desoneração dos 17 setores, não conseguiu apresentar uma solução que o Congresso aceite. O senhor costuma pensar fora da caixa. Tem alguma sugestão?
Tenho dialogado muito com o presidente Rodrigo Pacheco sobre reformar nosso processo orçamentário. É claro que os parlamentares têm toda a legitimidade para emendar o orçamento, alocar recursos para bases. Eles conhecem as necessidades dos municípios brasileiros. Mas é preciso dar organicidade para que não se perca a visão do todo, o planejamento. Se os parlamentares tem uma capacidade de emendamento de R$ 50 bilhões, a próxima pergunta é quem fará os projetos estruturantes que vão transformar de maneira duradoura a vida das pessoas? É claro que precisa asfaltar ruas, mas isso deixa espaço orçamentário para construir uma grande rodovia ou ferrovia? São dilemas que a democracia apresenta.
Mas e o volume de despesas do governo?
Temos que olhar para os 2 lados da responsabilidade fiscal. É preciso falar em cortes, e há muito espaço. Fizemos relatórios sobre fraudes no INSS, no bolsa família, no CadÚnico. É preciso se falar seriamente sobre uma reforma administrativa, sobre o tamanho do Estado, uma nova reforma da previdência, e também de algo que os empresários por vezes preferem evitar, que é o corte dos incentivos fiscais. Não é correto, justo ou legítimo que setores com poder de lobby consigam isenções que nem sempre estão conectadas às boas políticas públicas.
Isso resolveria a questão fiscal?
Certamente. O deficit da previdência é de R$ 500 bilhões anuais, dos quais R$ 400 bilhões vêm do RGPS e R$ 100 bilhões do setor público, sendo R$ 50 bilhões dos civis e R$ 50 bilhões dos militares. Temos também quase 5% do PIB em isenções fiscais, algo como R$ 500 bilhões. Só aqui já é R$ 1 trilhão. Em vez de a equipe econômica fazer avaliação por setores, precisa sentar, talvez no Conselhão, e chamar os presidentes da Câmara, Senado, líderes partidários, líderes empresariais e dizer: o quadro do Brasil é este.
E não é uma questão de extinguir tudo, mas de rever o que não dá resultado…
Claro que não vamos resolver tudo zerando o deficit da previdência. Mas também não vamos resolver tudo zerando os incentivos fiscais porque existem setores que dependem de incentivos para viver, especialmente os que focam em inovação e pesquisa. São eles que vão nos dar um salto qualitativo de produtividade. Agora, será que precisamos de isenção fiscal em todos os itens da cesta básica? Será que é justo o Estado subsidiar o feijão do rico como o do pobre? Não é só pobre que come feijão, arroz, carne. Se dá isenção indiscriminada beneficia o pobre, mas também o rico.
Como diferenciar um do outro?
A proposta do cashback, do governo, me pareceu inteligente. Claro que o Congresso tem toda a legitimidade para limitar o efeito ou recusar. Mas tem que fazer isso sabendo que está financiando a cesta básica do rico. Dinheiro do orçamento é para canalizar em quem precisa. Não faz sentido subsidiar o banquete do rico.
No passado o senhor defendeu uma nova reforma da previdência começando pelos militares. Continua defendendo essa estratégia?
Dos RS 500 bilhões de deficit da previdência, tem R$ 400 bilhões do RGPS. O deficit individualizado anual é muito pequeno nessa área, cerca de R$ 7.000 por trabalhador. Poderia ser corrigido com ajuste na idade mínima, aumento de contribuição. No caso dos servidores civis é de cerca de R$ 50.000 ao ano. Precisa ser corrigido rápido. No caso dos militares, fala-se de mais de R$ 150.000 por pessoa ao ano. Mas quando fiz essa defesa, recebi um telefonema do fraterno amigo ministro José Múcio (Defesa) e assumi um compromisso de não falar mais sobre começar a reforma pelos militares. E não gostaria de entrar na polêmica. Mas os números são os números. O Congresso conhece os números e o governo também. É um debate que a sociedade brasileira vai ter que travar. Mas prefiro não entrar na polêmica.
Uma das prioridades do governo Lula no TCU são as revisões de concessões antigas, como de rodovias em que as empresas queriam devolver os contratos, e de aeroportos, fazendo concessões guarda-chuva. Como o TCU tem trabalhado esse tema de forma a respeitar os contratos e a segurança jurídica?
Precisamos voltar um pouco no tempo. Nos anos 2011 e 2012, o Brasil viveu uma rodada de concessões. Se projetava um crescimento econômico que não se realizou. Tínhamos adiante a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Vieram crises sucessivas e a Lava Jato, que paralisou o setor de infraestrutura, e depois a pandemia. Por quase 15 anos o Brasil andou para trás. E as projeções não se concretizaram. Em 2011, havia certa ingenuidade do governo ao tentar achatar a taxa interna de retorno das empresas e ao mesmo tempo conseguir investimentos que o Brasil precisa. Se mostrou um fracasso gigantesco. As empresas eram cobradas e ficavam com um passivo regulatório tremendo. Alegavam que o contrato ficou desequilibrado e exigiam a repactuação. Só que no meio disso veio a Lava Jato, que criou na esfera pública a criminalização do diálogo. Uma repactuação desse tamanho só se faz em uma mesa com o poder concedente, agência reguladora e concessionária apresentando as planilhas e mostrando o desequilíbrio. Nos anos da Lava Jato, uma mesa dessas era o suficiente para que os 3 fossem presos por arquitetar esquema de benefícios privados. Passaram do ponto. Ao invés de perseguir os bandidos, e havia bandidos, lançou uma névoa de suspeição sobre toda a atividade pública. Criou-se o apagão das canetas. Agências reguladoras deixaram de tomar decisões. Só que ao não fazer nada, os contratos que previam os investimentos começaram a ser judicializados e quem perdia era o usuário. Há 4 anos começamos a discutir com o então ministro Tarcísio de Freitas, que é muito inteligente. E tivemos uma experiência piloto em Mato Grosso.
A BR 163 que inaugurou a secretaria de consenso?
Isso. Ela corta o Estado de norte a sul e termina em Mato Grosso do Sul. Alguns maledicentes e mal-intencionados dizem que isso surgiu quando o presidente Lula ganhou a eleição. O 1º acordo foi com um governador de direita, que é o Mauro Mendes. A principal rodovia do Estado era a campeã de mortes e acidentes e um vetor de atraso para escoar a produção. O governador procurou o TCU com uma proposta ousada. A concessionária aceitava sair, mas tinha um passivo regulatório e de financiamento enorme. O Estado dizia que tinha dinheiro e aceitava receber a rodovia. A agência reguladora, que achava uma boa solução, não tinha coragem de assinar um contrato como esse com medo do TCU. O primeiro acordo de repactuação de uma rodovia federal foi feita com Mato Grosso estadualizando uma rodovia. Eles dispunham em caixa de R$ 1 bilhão. Hoje já foi duplicado um trecho e há várias intervenções. Querem concluir em 2 anos e só não vai mais rápido porque as construtoras não têm mão de obra. Faltam operários. Hoje temos um conjunto de 20 grandes empreendimentos que, se forem otimizados, terão um investimento privado de R$ 100 bilhões em 2 anos. É pegar um contrato fracassado, modernizar e colocar obrigação de a concessionária começar obras em 30 dias.
Qual o formato da secretaria?
Sempre digo que auditor é treinado para encontrar problemas. Mas, quando se fala em grandes contratos, é preciso que tenhamos auditores que saibam pensar soluções. Foi o que fizemos. Praticamente todos os acordos foram aprovados por unanimidade. O tribunal tem essa percepção de que é preciso corrigir contratos atrasados. Essa secretaria de consenso é talvez a maior boa novidade da administração pública brasileira nos últimos 20 anos. Está conseguindo otimizar esses contratos dentro de uma governança sólida onde sentam na mesma mesa poder concedente, agência reguladora, concessionária, unidade de auditoria especializada do TCU coordenados por um auditor da secretaria de Consenso que conhece os custos da não realização da judicialização. O cidadão não tem interesse nas multas, mas nos serviços. Se o tribunal consegue fazer o controle e exigir que abram os números e planilhas com o TCU como testemunha que é tudo em bases republicanas, a pergunta que fica é: quem pode ser contra isso, se não quem deseja o atraso?
Houve um decreto do governo Lula que transferia parte dessa responsabilidade para a AGU, mas ele acabou recuando. Como o senhor viu essa movimentação?
O decreto tinha 2 equívocos conceituais. Mas assim que o presidente Lula foi esclarecido, corrigiu e não há problemas. A AGU sempre foi parceira do TCU e convidada a participar de todas as mesas. Cada ministério tem uma consultoria jurídica que é ocupada por um membro da AGU. Sempre que fizemos acordos do setor ferroviário, rodoviário, havia um membro da AGU na mesa. O que a AGU não pode é dar um parecer do ponto de vista do TCU. Ela orienta o poder Executivo. Há uma certa desinformacão ao dizer que a AGU não participa. Eles participam desde o começo de todas as tratativas. O que acho que é uma postulação legítima foi que o gabinete do advogado-geral poder designar alguém para acompanhar as tratativas uma vez que existe uma lei que determina que em acordos acima de determinado valor ele precisa assinar com o ministro. Considero uma postulação legítima e estamos trabalhando numa questão de ordem para levar ao plenário do TCU para que cada vez que chegar um pedido de solução consensual, vamos notificar a AGU para que designe alguém para acompanhar a negociação. Não há conflito, pelo contrário. Uma relação construtiva e saudável como sempre.
O conselho de honorários da AGU contratou um seguro milionário para blindar os seus gestores. Voltaram atrás depois de reportagem do Poder360. O MPTCU fez uma representação sobre o tema. É comum esse tipo de seguro no setor público?
Temos uma representação do MP e o tribunal terá de julgar. E o fato de o contrato não ter sido realizado não necessariamente significa que a representação perdeu objeto. O TCU muitas vezes atua também de forma a expedir recomendações e determinações para que erros e ilegalidades não aconteçam no futuro. Nossa missão não é apenas repressiva, ela é também preventiva.