Material é altamente inflamável e regras nacionais e internacionais limitam o transporte pelos riscos. Empresa suspendeu a autorização após incêndio em avião com entregas da estatal em SP
Desde que a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) estabeleceu novas regras para o transporte aéreo de baterias de íon lítio em 1º de abril de 2016, todos os gestores dos Correios permitiram de ofício esse deslocamento. A estatal não tem autorização para realizar esse tipo de operação.
Baterias de íon lítio são altamente inflamáveis no transporte aéreo por causa da exposição a condições de temperatura e de pressão que podem levar um incêndio –que é de difícil contenção porque se retroalimenta nas células energizadas do dispositivo.
Desde a imposição da regra, os Correios tentam, sem sucesso, obter a autorização. Isso não impediu que os gestores da estatal autorizassem, por conta própria, o transporte.
Em todos os governos posteriores à regra, o transporte foi permitido de ofício. Isso aconteceu durante os governos de Michel Temer (MDB), de Jair Bolsonaro (PL) e, agora, de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Segundo diversos gestores e ex-gestores dos Correios consultados pelo Poder360, as autorizações temporárias foram concedidas por pressão da Abinee (Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica).
Nos governos anteriores, as autorizações temporárias foram concedidas por prazos que giravam em torno dos 90 dias. Houve momentos de interrupção desse transporte durante a gestão do general Floriano Peixoto (2019-2022).
O atual presidente, Fabiano dos Santos Silva, continuou concedendo as autorizações. Ele ampliou os prazos: passaram de 90 dias para cerca de 10 meses.
A última autorização de ofício de Fabiano foi feita em agosto de 2024. Teria validade até junho de 2025. No entanto, foi interrompida em 14 de novembro. Leia a íntegra da permissão (PDF – 245 kB) e da suspensão (PDF – 243 kB).
Cinco dias antes, um avião que transportava cargas dos Correios havia sofrido um incêndio interno e sido obrigado a realizar um pouso de emergência no aeroporto de Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo.O Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos) investiga as causas do fogo. Especialistas consultados pelo Poder360 (leia mais abaixo) avaliam que as características do incêndio no Boeing 737 da Total Cargo são compatíveis com as observadas nas baterias de íon lítio.
Os Correios informaram que não havia baterias dessa modalidade declaradas no voo. A estatal, porém, recusou-se a fornecer a lista de itens a abordo e alegou “sigilo”.
Ao Poder360, a Anac informou que os Correios não têm permissão para fazer o transporte. A estatal mantém há alguns anos um grupo de trabalho para se adaptar aos ditames da agência.
A previsão é que a autorização talvez seja emitida até o meio de 2025. Discute-se a possibilidade de transportar as baterias por via terrestre, mas não há definições.
O Poder360 teve acesso a documentos da gestão atual e de anteriores autorizando o transporte das baterias. E também algumas, da gestão de Floriano, suspendendo por algum tempo.
Eis as íntegras:
- 2019 – gerente dos Correios autoriza transporte (PDF – 37 kB);
- 2020 –Floriano suspende transporte; prazo não é mencionado (PDF – 182 kB);
- 2020 – Floriano autoriza transporte por 90 dias (PDF –181 kB);
- 2022 –Floriano autoriza transporte por 4 meses (PDF – 243 kB);
- 2022 – Floriano autoriza transporte; prazo não é mencionado (PDF – 270 kB);
- 2023 – Fabiano prorroga licença por 9 meses (PDF – 246 kB);
- 2024 – Fabiano prorroga licença por 10 meses (PDF – 245 kB).
O Poder360 também teve acesso a cartas da Abinee pedindo que os Correios autorizassem esse transporte para que as empresas não tivessem prejuízo. Tanto o atual presidente, Humberto Barbato, quanto o diretor-executivo, Anderson Jorge de Souza Filho, assinam os documentos.
Eis as íntegras:
O jornal digital procurou a Abinee para perguntar se gostaria de se manifestar a respeito dos pedidos enviados aos Correios. Não houve uma resposta até a publicação desta reportagem. O texto será atualizado caso uma manifestação seja enviada.
Procurados, os Correios disseram que as gestões anteriores também autorizaram esse transporte. Enviaram documentos da gestão anterior aprovando o transporte de baterias de íon lítio.
“Ao contrário da gestão anterior, que sucateou a empresa para ser privatizada, a atual gestão investiu para melhorar a segurança, com a aquisição de equipamentos de raios-X (os aparelhos herdados pela atual gestão foram comprados em 2012, ou seja, há mais de 10 anos)”, compararam os Correios. A gestão de Floriano Peixoto não quis se manifestar sobre o assunto.
RISCOS DE TRANSPORTAR BATERIAS
Ao Poder360, o diretor de Cargas Perigosas da Rima Aviação, Lucas de Paula, disse que os riscos associados ao transporte de baterias de íon de lítio estão presentes nos químicos e no manuseio errados.
Baterias danificadas podem superaquecer durante um voo por causa da variação de temperatura e pressão. Ele afirma que basta um curto-circuito para espalhar o fogo.
“É fundamental que qualquer operação de transporte de baterias de íon de lítio siga as diretrizes estabelecidas pela Anac e pela Oaci [Organização de Aviação Civil Internacional] para garantir a segurança de todos a bordo. Se os Correios estão autorizando esse tipo de operação, é importante que estejam em conformidade com as regulamentações e que implementem medidas de segurança rigorosas para mitigar os riscos associados”, disse de Paula.
Já o chefe global de carga da Iata (Associação Internacional das Empresas Aéreas, na sigla em inglês), Brendan Sullivan, disse que cabe à autoridade postal, os Correios, ter controle sobre o que é enviado pelos seus serviços e entregue ao operador aéreo.
“Quando se trata dos Correios, cabe ao operador postal fazer o controle porque eles entregam à companhia aérea o produto final. O Estado é obrigado a supervisionar a autoridade postal, e a autoridade postal precisa ter procedimentos muito específicos em vigor para a aceitação de dispositivos alimentados por baterias de lítio”, afirmou ao jornal digital.
O ex-diretor da Anac e engenheiro aeroespacial Rogério Benevides declarou que as baterias fazem parte de um rol de produtos reconhecidos como perigosos pela Iata.
A decisão da Anac seguiu a determinação da autoridade máxima no assunto em plano global. “O lítio tem limitações por causa do seu risco de pegar fogo e explodir e causar danos dentro de uma aeronave. Não existe a possibilidade de não seguir o material da Iata que é replicado dentro da nossa legislação”, afirmou Benevides.
Em relação ao pouso de emergência do cargueiro da Total Cargo em Guarulhos, Benevides disse que o incidente tem um perfil similar ao de manuseio inadequado de carga.
“Não posso afirmar porque não li o relatório, mas é passível de ser qualquer coisa desse tipo”, declarou o ex-diretor da Anac. “Já tivemos diversos incidentes de quando mercadorias não seguem seu rito mandatório de proteção ou de não transporte”.
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