Detonação de pagers pode configurar terrorismo e crime de guerra – mesmo sem menção legal explícita – Artigo – CartaCapital

A detonação à distância de aparelhos eletrônicos de comunicação usados no Líbano, como pagers e walkie-talkies, inauguram uma inusitada ‘modalidade’ de crime de guerra à longa lista das violações que já vêm sendo cometidas no conflito Israel-Gaza. Podem também ser vistos pura e simplesmente atos de terror – por não distinguirem alvos legítimos de civis inocentes, semeando o pânico generalizado na população, uma vez que essas explosões sem alvo definido podem ocorrer a qualquer hora, contra qualquer um, em qualquer lugar, visando um objetivo político, que é o de obrigar alguém (no caso, o Hezbollah) a fazer ou deixar de fazer algo: eis a própria definição de terrorismo.

Evidentemente, as leis da guerra não têm nenhuma disposição específica sobre o uso de pagers e de walkie-talkies como armas. Mas o que importa não é a menção expressa aos aparelhos em si, mas o princípio de ‘distinção’ que deve haver entre alvos militares (que são legítimos) e civis (que são protegidos). Se um meio ou método de combate não consegue cumprir com esse princípio, então ele é ilegal. Se uma tática ou estratégia não é concebida para distinguir civis de combatentes, então ela não é permitida.

Nas guerras, até existe a figura do dano colateral. Exércitos tentam sempre argumentar que as mortes de civis são danos colaterais indesejados. Quando Israel, por exemplo, mata civis em Gaza, trata de dizer que o ataque não teve esses civis palestinos como alvos deliberados, mas que eles foram atingidos de maneira colateral por um ataque que, na verdade, foi concebido para atingir membros do Hamas que estavam escondido entre os civis, fazendo uso de escolas e de hospitais como escudos. Civis, escolas e hospitais são locais protegidos pelas leis da guerra, mas podem perder essa proteção quando usados com finalidade militar pelo inimigo. Israel vem exacerbando essa lógica ao máximo para conduzir uma guerra baseada em grande medida na extrapolação do conceito de dano colateral, de maneira desproporcional.

Agora, a novidade de detonar aparelhos de comunicação leva a situação a outro patamar. Pagers e walkie-talkies são aparelhos civis. Não são armas, munições, veículos militares, uniformes. São artefatos de uso comum e cotidiano, que podem estar nas mãos de qualquer pessoa inocente – como de fato estavam, pois o número de pessoas atingidas já passa de 400. Pelo menos duas crianças morreram nessas explosões de aparelhos: Fatima Abdullah, de 9 anos, e Bilal Kanj, de 11, de acordo com correspondentes do New York Times na região.

Israel já usou no passado aparelhos telefônicos como arma, mas com emprego diferente: em 1972, o serviço secreto israelense colocou explosivos na base de mármore que apoiava um telefone usado pelo então representante da Organização para a Libertação da Palestina em Paris, Mahmoud Hamshari. Quando ele atendeu o telefone, o Mossad detonou o explosivo. Hamshari perdeu uma perna e, pouco depois, morreu. Em 1996, os israelenses fizeram chegar às mãos de Yahya Avyash, um então conhecido fabricante de bombas do Hamas, um celular Motorola dentro do qual havia algumas gramas de explosivos. Quando ele atendeu um telefonema do próprio pai, os israelenses, que estavam na escuta, explodiram o aparelho e, com ele, a cabeça do “Engenheiro”, apelido pelo qual Yahya Avyash era conhecido.

Mas nesses dois casos antigo, os alvos eram combatentes, não civis. Além disso, a tática empregada por Israel garantia que a explosão seria dirigida especificamente contra seus alvos, pois o serviço secreto só detonou os explosivos quando detectou a voz de seus alvos na linha. É claro que, mesmo com isso, ambas ações podem engendrar ilegalidades – a de 1972, por exemplo, foi cometida na França, que não era absolutamente um país participante do conflito –, ainda assim, são ações que nem se comparam com a disseminação de centenas de aparelhos entre a população libanesa.

Israel não assume a autoria desses ataques, mas tampouco nega. A menos que se prove que algum fenômeno tecnológico singular está fazendo os aparelhos explodirem num único país do mundo, todos ao mesmo tempo, vai pairar sobre Israel essa suspeita, dado que o país vive um conflito armado ativo com o Hezbollah, com trocas de fogo na fronteira e ameaças de uma escalada total.

Por último, é importante dizer que a situação inusitada dos pagers antecipa um pouco do debate – um debate ainda sem resposta – sobre como o mundo vai regular as novas máquinas autônomas de guerra, que estão sendo inventadas hoje para operar no futuro por meio de algoritmos que selecionam alvos sem controle humano nos campos de batalha.

Fonte: Terra

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