Mulher – Está me doendo muito isso aqui
Homem – Tô dizendo pra tu procurar um médico há uma semana
Mulher, já irritada – Mas eu já fui no médico!
Homem – Mas não resolveu…
Mulher – Ah, tá! Viraste médico agora…
Homem – Não… apenas estou tentando te ajudar, afinal aquela vez que quebrei a mão, foi indo noutro médico que resolveu
Mulher – Ah, tu sempre fala nas coisas comparando com o que aconteceu contigo, sai do centro do mundo, já te falei!
Homem – Quê? Do que tu tá falando?
Os ânimos já estão quentes, a essa altura. A criança que havia deitado se levanta com as vozes exaltadas.
Prossegue:
Homem – Eu não estou comparando… ah, meu Deus, olha o entendimento que tu tem das coisas, mulher! Que comparando o quê! Tô falando que quando eu me machuquei me trataram da mesma forma no hospital: o doutor olhou pra minha cara, espantado com a história e achou que eu ia bater nele. Nem fez raio x!!! Mal enfaixou e deu…
Mulher – Ah, tá, tu queres discutir a essa hora… eu que estava falando!
Homem – Ah, então é isso… por que não disseste? Achei que estávamos conversando. Um fala e outro escuta, vice-versa e tudo embolado também. Não é diálogo escrito…
Mulher (cada vez mais exaltada) – Contigo não adianta, tu quer é tomar conta de tudo, não deixa espaço para a opinião de ninguém!
Homem (perdendo as estribeiras também) – Eu pensei que tu quisesse conversar, afinal faz uma semana. Há pouco mesmo eu pensei em conversar contigo sobre… olha no que deu… tu não sabe te deixar ser cuidada.
Mulher – Tá, chega, já vai emendar uma coisa na outra. Quando começa não pára mais… cara chato!
Homem – Olha, só… eu estava apenas te cuidando, coisa que ontem mesmo tu me pedia, lembra?
Mulher – Ah, vai continuar… que ser insuportável!
Criança (com voz triste) – Tudo de novo…
O homem pega a filha escondida atrás da cortina da janela.
Homem – Vem, filha. Ninguém tá brigando. O papai só estava tentando ajudar a mamãe.
Mulher (vinda do quarto quando o homem já deixara a criança na cama e chegara no banheiro para escovar os dentes) – Mas como tu vai resolver algo que tu nem sabe lidar? Tu é médico, por acaso? Que coisa!
Homem – Que que tem a ver ser médico com notar que tu está machucada e ter ido, dias atrás, no médico não resolveu?
Mulher – Tem a ver que todo machucado tem um tempo para se analisar e, então ser cuidado. Eu não quebrei o joelho ou o tornozelo, estou apenas machucada!
Homem – Tá certo, então. Tu entende dessas coisas realmente… eu ignoro por completo. Só queria ser amoroso, cuidadoso, gentil…
Mulher – Não, tu quer é discutir
Homem – Meu Deus do céu! E sou eu que continuo? Chega. Deu. Tá bom…
Mulher (resmungando) – Acha que pode falar qualquer coisa do jeito que quer e depois não pode ouvir…
Homem (já lavando a louça, nervoso, mas nem tanto, pois a criança dormiu, resmunga, depois fala sozinho) – Que absurdo! Começa a falar e não posso nem dizer algo que é o que penso pelo jeito como ela está. Não sabe se deixar ser cuidada… não sabe!
O apartamento respira fundo enquanto essa energia confusa e costumeira – que já foi mais densa devido aos gritos ilógicos de ouvidos moucos – vai se dissipando na louça sendo lavada, na música no celular para acompanhar a última lida do dia, no lixo sendo separado, no silêncio no quarto da criança e no quarto do casal, onde a mulher, com dor, articula
sua perna para deitar o mais confortavelmente possível enquanto reza para que o homem não volte a falar no assunto.
Será que ele não sabia que ela estava tão cansada e dolorida que falar e apenas ser ouvida lhe daria a paz necessária para aliviar a noite de sono sem resolução para o seu problema?
Será que ela não sabia que quando ele abriu a boca falava num sistema que nos trata como lixo, seja nessa cidade ou noutra, seja esse médico ou aquele, e não comparando uma situação com outra no sentido da natureza – obviamente – diferente de um machucado e de outro?
Seria uma noite de dores insuportáveis no corpo dela.
Seria uma noite de dores insuportáveis na mente dele.
E seria a mesma noite…
Por: João Cony – escritor e poeta
