Não existe sustentabilidade sem desconforto e sacrifício; é preciso pensar em um gabinete permanente de crise
“O pensador, quando se debruça em seus estudos sobre o que acha melhor para a sociedade, não vai conseguir fazê-lo de barriga vazia. Ele depende de que seu café da manhã tenha sido produzido por um processo social que vai muito além de sua compreensão plena.
“Seu desjejum depende de trabalhadores em plantações de café brasileiras, em laranjais da Flórida, em canaviais cubanos, plantações de trigo nas Dakotas, laticínios em Nova Iorque; de que tudo isso seja encaminhado por navios, trilhos de trem e caminhões, que seja cozinhado com carvão da Pensilvânia em utensílios feitos de alumínio, porcelana, aço e vidro.
“Mas ninguém conseguiria compreender ou planejar deliberadamente todos os detalhes dos processos que trazem o resultado final para cima de sua mesa de café. É a existência de um sistema infinitamente complexo como esse que permite a uma pessoa tomar seu desjejum despreocupadamente e então se dedicar a pensar sobre seus planos de mudança social.”
Esse é um trecho, traduzido livremente, do livro “The Good Society” (1937), escrito pelo influente escritor norte-americano Walter Lippman. A vinheta ilustra bem como estamos inseridos em redes intrincadas de fornecimento de produtos e serviços, que se encaixam tão bem a ponto de presumirmos que são naturais e invisíveis.
De certa forma, somos como crianças, achando que a comida aparece sozinha no supermercado. Esse pensamento mágico se estende para o que se vende como “solução” para as mudanças climáticas.
Tome-se, por exemplo, o caso da Dinamarca. Tem coisa mais inspiradora que o país conhecido pelas bicicletas, brinquedos de encaixar e construções sustentáveis? Como lembra Vaclav Smil, considerado o maior especialista mundial em energia, o país nórdico, com metade de sua eletricidade vinda de fontes eólicas, é frequentemente apontado como um sucesso da descarbonização da economia, tendo cortado, nos últimos 30 anos, 56% de suas emissões relativas à produção de energia.
E ainda saem bem na foto, dando uns trocados para o Fundo Amazônia e exaltando o papel do Brasil na transição energética, como em visita recente de parlamentares daquele país, relatada por este Poder360.
Mas agora vem o choque de realidade. A Dinamarca não produz nenhum dos metais centrais da economia mundial (alumínio, cobre, ferro e aço), não manufatura papel ou vidro plano, não sintetiza amônia (base dos fertilizantes modernos) e nem mesmo monta carros. Todos esses produtos, lembra Smil, são bastante intensivos em energia. Logo, terceirizar as emissões associadas com sua produção a outros países cria uma reputação verde imerecida.
PACTO
Na mesma linha, tem aroma dinamarquês o Pacto pela Transformação Ecológica (PDF – 669 kB) assinado por representantes dos Três Poderes brasileiros, em 21 de agosto. A intenção é nobre, mas estamos novamente no campo do autoengano.
Vaclav Smil deixa claro que ainda nem atingimos o pico de emissões de gases do efeito estufa e que as soluções necessárias para a descarbonização da economia mundial não chegarão até a data mítica de 2050, quando se esperaria, como em um conto de fadas, emissões líquidas zeradas.
O cenário de fantasia que move COPs, como a que teremos ano que vem em Belém, ignora que a demanda por petróleo e gás natural ainda estará em 2050 basicamente no mesmo patamar atual, se não crescer. E que os países do G20 teriam de cortar ao meio, até 2030, o nível de emissões com que começaram a década atual. Na China, chão de fábrica do mundo, o corte teria de ser ainda maior. Na prática, isso só aconteceria com um colapso econômico sem precedentes.
Para se ter uma ideia do sacrifício, Smil estima que as principais economias do mundo teriam de dedicar, em conjunto, até 25% de seu PIB anualmente para alcançar a transição energética dos sonhos. Por 3 décadas sem parar. Isso com países em conflito, desafiados pelo envelhecimento populacional, dívida pública alta etc.
Mas essa visão é incompleta, pois não leva em conta as consequências de tanta atividade humana, como a degradação de solos, o maior risco de pandemias e o tsunami plástico que criamos em forma de poluição e que contamina, inclusive, nossos corpos.
Porque, no fundo, o problema é o crescimento exponencial em um sistema com recursos finitos (nosso planeta), diagnóstico antigo que sempre trago aqui, recentemente referendado por Geoffrey West, um dos principais nomes da ciência da complexidade.
No mundo real, cada ano tem se tornado o mais quente da série e as anomalias climáticas explodem em frequência e intensidade, sugerindo que a chave no sistema já virou.
Enfim, será que os atores envolvidos no pacto ecológico brasileiro entendem que os sinônimos mais honestos de sustentabilidade seriam sacrifício e desconforto? Será que, pra começar, autoridades estariam dispostas a andar de transporte público e cortar viagens de avião?
Se é para levar o problema realmente a sério, é preciso pensar não em um pacto indolor, mas em um gabinete permanente de crise.