José Paulo Kupfer | A volta dos que não foram

Fernando Haddad

Dificuldades na administração da dívida pública, com a crescente colocação de papéis de curto prazo, indicam uma crise de confiança e explicam a virada de prioridades proposta por Haddad

Um sinal de alerta, do tipo vermelho nível 1, como nas bandeiras tarifárias de energia, está sendo emitido pelo mercado de títulos da dívida pública brasileira. Foi essa sirene que tocou no Ministério da Fazenda, fazendo com que o ministro Fernando Haddad lançasse mensagens de que as prioridades do governo teriam de mudar. 

Em movimento coordenado, que incluiu falas em seminário, entrevistas à imprensa e variados vazamentos de planos e medidas, a partir da 2ª feira (14.out.2024), Haddad anunciou que a nova prioridade econômica do governo seria cortar e revisar gastos públicos, para fazer o Orçamento caber no arcabouço fiscal definido em 2023.

A estratégia de aumentar a arrecadação, para acomodar programas e incentivos governamentais em aceleração, passaria a um 2º plano. Ao mesmo tempo, a reforma do Imposto de Renda e do patrimônio seria jogada para frente, num período indefinido entre 2025 e 2026, o último ano do governo.

O sinal preocupante captado por Haddad vem do aumento da colocação pelo Tesouro de títulos pós-fixados, com destaque para a velha e perigosa LFT (Letra Financeira do Tesouro), que é indexada à taxa Selic. A menor demanda por papéis pré-fixados e a necessidade de oferecer LFTs indica que o mercado está convencido de que a inflação continuará pressionando o teto do intervalo de tolerância do sistema de metas e, em consequência, os juros básicos tendem a subir ainda mais.

Como resultado, o mercado de dívida pública voltou a viver um daqueles momentos de anomalia, que fazem parte da sua história, com mais frequência a partir dos anos 1960. A anomalia se reflete no fato de que, no momento, as taxas de juros dos papéis de curto prazo estão mais elevadas do que as taxas dos títulos de longo prazo. O normal seria que títulos longos, cujo risco é maior, pagassem prêmios mais altos, não o contrário.

Esse tipo de comportamento tem nome, chama-se crise de confiança. Ao se concentrar em títulos de curto prazo, a taxas flutuantes, o mercado está transmitindo a mensagem de que não acredita que o governo, com arcabouço e tudo, conseguirá equilibrar as contas públicas, obtendo superavits robustos o suficiente para estancar a escalada da dívida pública.

Criadas em 1987, nos estertores do Plano Cruzado 2, pelos mesmos autores do Plano Real, as LFTs são uma herança ainda viva dos tempos de hiperinflação. Com alta liquidez e rendendo Selic diária, são papéis praticamente sem risco. Pelas LFTs, o mercado monetário se conecta com o mercado de dívida, num caso único no mundo. 

Quando a dívida mobiliária pública carrega volumes elevados de LFTs, a política monetária fica distorcida e perde potência. O enxugamento de liquidez, que é o objetivo de políticas restritivas de juros altos, funciona ao contrário, com a rolagem dos títulos de curtíssimo prazo, colocados a taxas cada vez mais altas. Nessas situações, quanto mais altos os juros, maior a liquidez no mercado, maior o estoque da dívida e maior a riqueza financeira —quando tudo isso deveria retrair. Em consequência, instala-se uma preferência absoluta por papéis da dívida curtos. 

As LFTs chegaram a representar dois terços da composição da dívida mobiliária federal, na virada de FHC para Lula, em 2002. Ainda respondiam por um terço da dívida em 2012. E caminham, agora em 2024, numa volta dos que não foram, para absorver metade da dívida mobiliária federal.

No PAF (Plano Anual de Financiamento), divulgado pelo Tesouro no começo do ano, o limite estimado para as LFTs, no conjunto da dívida, variava num intervalo de 40% a 44% do total. Um dos objetivos declarados do Tesouro, na ocasião, era promover a substituição gradual de títulos a taxas flutuantes por papéis pré-fixados. Mas, em setembro, o Tesouro foi obrigado a publicar uma revisão de metas, e a parcela prevista de títulos atrelados à Selic subiu para um intervalo de 43% a 47%.

Pelas palavras de Haddad e outros relatos que chegaram ao noticiário, o presidente Lula estaria a par do cavalo de pau nas prioridades do governo, entendia suas premissas, mas ainda não tinha batido o martelo sancionando a virada pretendida. 

Ao longo da semana, em suas aparições públicas, Lula fez questão de negar o apoio às pretensões de seu ministro. Pontuou sempre que não abriria mão da política de valorização do salário mínimo, da vinculação dessa política ao reajuste das aposentadorias, e que manteria pisos mínimos de gastos para Saúde e Educação.

Pode ser jogo de cena, um negócio em que Lula é craque, mas é mesmo difícil acreditar que ele toparia tirar o pobre do Orçamento, muito menos sem incluir os ricos no Imposto de Renda. Este é o mote que está na alma de Lula e orientou suas promessas na campanha eleitoral de 2022.

Diante, contudo, dos crescentes desequilíbrios fiscais e desconfianças do mercado, pode-se imaginar que o pragmático Lula aceitará um programa de contenção de despesas, desde que não se restrinja a podar programas sociais.

A ideia já lançada de cortar supersalários no funcionalismo público, de apelo popular, embora politicamente difícil de ser concretizada, ainda que de efeito prático limitado, é um exemplo do caminho que poderá vir a ser percorrido. Além disso, há evidências de que muitos gastos deveriam mesmo ser revisados por serem regressivos, beneficiando quem não precisa —caso de isenções e desonerações a segmentos ou grupos econômicos—, ineficientes ou mesmo infestados de fraudes.

Fonte: Poder 360

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