O que se precisa limitar e restringir, no caso das bets e de outros produtos e serviços nocivos, é a oferta, não a liberdade de escolha do cidadão
Depois da divulgação de informações que comprovaram a explosão destrutiva das apostas esportivas ou nem tão esportivas entre nós, congressistas correram para entupir o Congresso de projetos de lei para restringir a atividade de bets, que eles mesmos aprovaram com muito mais liberdade do que agora propõem.
Ao mesmo tempo, o governo saiu a campo para anunciar estudos com o objetivo de restringir o gasto com apostas, limitando a liberdade de gastar a renda recebida como bem entender, no caso de beneficiários de programas sociais de transferência de renda, dos quais o maior é o Bolsa Família. Foi o que informou, na 5ª feira (26.set.2024), o ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
Haddad apareceu com uma autêntica “ideia rolha”. “Ideia rolha” é aquela de que governos se valem para tentar estancar, muito precária e provisoriamente, sem a necessária e responsável consistência.
Está devidamente comprovado que apostar em bets se tornou uma epidemia entre brasileiros. Sem uma legislação efetivamente restritiva, as casas de apostas inundaram as camisas dos clubes, as áreas de publicidade dos estádios e a mídia de um modo geral, com a luxuosa participação de celebridades, influencers, apresentadores de TV e jogadores de futebol.
Levantamento do Banco Central, sem nenhuma dúvida bastante subestimado, pois só contabilizou o gasto em apostas por meio do PIX, encontrou um espantoso volume de R$ 21 bilhões em apostas, somente no mês de agosto. A média mensal até o 8º mês do ano, em torno de R$ 20 bilhões, permite imaginar que, no final do ano, os brasileiros terão transferido para as bets quase R$ 250 bilhões, uma montanha de dinheiro equivalente a mais de 2% do PIB.
Essa dinheirama saiu do bolso de 24 milhões de apostadores, com o agravante de que R$ 3 bilhões do total de apostas saiu do minguado orçamento de cadastrados no Bolsa Família —um quarto dos R$ 14 bilhões repassados em agosto. Dos 20 milhões de beneficiados, 5 milhões –também um quarto deles–, fizeram uma fezinha.
A história dessa epidemia, que, como outras epidemias, ameaça produzir devastação social, não poderia ser mais clássica, em se tratando da introdução e do avanço de atividades nocivas no país. As bets foram liberadas para operar em 2018, no governo Temer, com a condição de que a atividade fosse regulamentada em até 2 anos.
No mandato de Jair Bolsonaro nada foi feito, e o vírus da jogatina continua se expandindo sem restrições. Logo no começo de seu 3º mandato, em janeiro de 2023, Lula assinou uma MP (Medida Provisória) em tentativa de regulamentar a atividade, mas a MP rolou e caducou no Congresso.
No fim do ano, foi, enfim, aprovada uma lei visando a regulação das bets. Mas a lei estava mais preocupada com as regras de arrecadação e pagamento de prêmios do que com a contenção de excessos no estímulo às apostas e com suas consequências.
A lei é extensa, mas, no que diz respeito a desestimular as apostas, passa um ar de coisa para “inglês ver”, com vedação de apostas apenas a pessoas diagnosticadas com compulsão por jogos. A taxação sobre a atividade, embora situada na média da adotada em outros países, estava longe de desestimular ou pelo menos impor alguma contenção ao jogo. Essa taxação se mantém muito abaixo dos tributos cobrados sobre produtos prejudiciais à saúde, promotores de vício, como cigarro e bebidas alcóolicas.
Depois de constatar que errara ao centrar suas preocupações na arrecadação potencial das bets, o governo, pela voz de Haddad, anuncia agora medidas de contenção. Mas volta a errar, ao concentrar seu alvo, pelo menos nestes primeiros momentos de reação ao desastre em curso, na limitação da liberdade do consumidor, e não no reforço de restrições à atividade.
A primeira reação de Haddad foi anunciar estudos para restringir a destinação de renda de beneficiários do Bolsa Família às bets. É um caminho que deveria ser abandonado por que a tendência é isso não acabar bem.
Depois de vedar gastos de beneficiários do Bolsa Família com apostas, em que outras restrições Haddad está pensando? Está bolando algum plano para também limitar ou vedar a compra de cigarros ou bebidas alcoólicas? Nas regras do Bolsa Família, nenhum produto ou serviço, nem esses sabidamente prejudiciais à saúde, inclusive mental, sofre restrições; é total a liberdade de escolha do que fazer com o dinheiro recebido.
Que tal, aproveitando a onda, impor limites às compras de açúcar, café, chocolates, ovos, alimentos ultraprocessados e outros produtos que, de tempos em tempos, são condenados, com base em pesquisas científicas, por causarem doenças e impactarem, negativamente, o orçamento e a capacidade de atendimento da saúde pública?
Vinte anos depois do surgimento do Bolsa Família, renascido das cinzas do Fome Zero, parece haver um esquecimento do que determinou o desenho do programa de transferência condicionada de renda. A ideia do Fome Zero era limitar os gastos com a renda transferida a alimentos, mas a reação forte contra a liberdade de escolha dos cadastrados acabou com qualquer restrição.
É um evidente equívoco querer tutelar os mais pobres e vulneráveis, como se fossem cidadãos incapazes. O fato de serem vulneráveis não torna os beneficiários do Bolsa Família menos cidadãos do que os demais.
A conclusão natural desse fato incontestável é a de que a possível vacina para a epidemia das apostas não está no uso do que as pessoas fazem do dinheiro transferido por programas sociais. Mas, sim, nos espaços e brechas na regulamentação que permitem a destinação de parte dos recursos para atividades socialmente deletérias.
Em outras palavras, a questão que precisa ser atacada não é a da liberdade de gastar, inclusive a renda que chega por programas sociais para vulneráveis. O “X” do negócio está na liberdade de oferecer aos consumidores, quase sem restrições, produtos e serviços que deveriam ter consumo limitado e desestimulado.
A solução eficaz do problema, em resumo, deve mirar não no consumidor, mas na oferta de produtos e serviços prejudiciais à população.