José Paulo Kupfer | O mercado quer mais sangue

Depois da alta de Selic, analistas projetam novas elevações nos juros básicos, sem considerar o risco de ampliar a contração numa economia em desaceleração

O boletim Focus, no qual o Banco Central organiza, semanalmente, as projeções de quase uma centena e meia de analistas, na imensa maioria do mercado financeiro, para os principais indicadores da economia, é tido como um lugar privilegiado para se obter o cenário econômico futuro, mesmo que suas previsões errem com frequência.

Mas, é no comportamento das curvas de juros futuros que se dá a prova do pudim de como os analistas e operadores do mercado financeiro estão avaliando a marcha da atividade econômica, da inflação, das contas internas —da economia como um todo.

As curvas de juros futuros, em especial os ramos mais longos, referentes a 2026 e 2027, dispararam na 5ª feira (19.set.2024), dia seguinte à decisão do Copom de iniciar um novo ciclo de altas nas taxas básicas (taxa Selic). A mensagem que o mercado está passando é a de que espera altas mais fortes, nas próximas reuniões do Copom, em novembro e dezembro, ou uma extensão do ciclo de elevação da Selic, em 2025.

Mesmo com um comunicado (PDF – 45 kB) resumindo as razões para a alta decidida pelo Copom considerado duro, só que avaliado por analistas do mercado como mais duro do que a elevação de 0,25 ponto, o mercado parece, de início, querer mais sangue. Para fazer a inflação convergir para o centro da meta, de 3%, num período acumulado de 12 meses, a partir de 2025, segundo a nova regra de meta contínua, na visão de analistas, seria preciso acelerar e estender as altas de juros.

Há quem calcule que, para isso, seria preciso subir a taxa básica mais 2 pontos percentuais, além do que já se estima para o fechamento de 2024. Ou seja, a Selic deveria avançar até de 13,50% a 13,75% para vencer a inflação.

Poucos, porém, apostam numa escalada tão pesada. A expectativa mediana é a de que os juros básicos avancem para no mínimo 11,50% –mais provável para 11,75%–, até dezembro, e para 12%, nos primeiros meses de 2025, quando Gabriel Galípolo, se for aprovado no Senado, já estará no comando do BC.

Isso significa que serão mais 3 altas, numa combinação de 0,25 ponto a 0,50 ponto em cada reunião do Copom, nesse intervalo de tempo. Apenas para dar uma ideia do tamanho da puxada, seriam, na média, 3 elevações de pouco mais de 0,4% cada. 

A leitura do comunicado do Copom de setembro deixa claro que, além das explicações de sempre, desta vez o colegiado centrou as justificativas para a primeira alta nos juros básicos desde junho de 2022, no aquecimento da economia. Por duas vezes, o comunicado se refere ao “hiato do produto” em terreno positivo. 

Desde 2015, ou seja, há mais de 8 anos, o hiato do produto mantinha-se negativo. Nos primeiros meses de 2024, segundo o Banco Central, o hiato passou a neutro e, agora, a positivo. Hiato do produto é uma medida da diferença entre o potencial de crescimento da economia e o crescimento real constatado.

Quando o hiato é negativo, a capacidade de crescer existente na economia está subutilizada. Assim, eventuais expansões da atividade não exercem pressões inflacionárias e quando não há crescimento, a pressão é desinflacionária.

Quando, porém, o hiato é positivo, significa que o aumento da produção esbarra na capacidade já utilizada existente. Nessa situação, as pressões sobre os preços tendem a elevá-los, desaguando em inflação.

Existe um problema com o cálculo do hiato do produto. O hiato não é uma variável observável, sendo preciso estimá-la. Daí, a coisa se complica porque, para estimar o hiato, não é possível escapar da formulação de hipóteses e da aceitação de premissas. Assim, o hiato de um pode não ser o hiato de outro, tornando instável o diagnóstico e as possíveis soluções.

No momento, sabe-se que a maioria das estimativas do crescimento potencial, na economia brasileira,  gira de 2,0% a 2,5%. Aceitando esta estimativa de produto potencial, pode-se concluir que, se a economia crescer 3% —ou até 3,5%, como espera o presidente Lula—, está aquecida e rodando acima da capacidade. Logo, se o BC tem mandato para fazer a inflação convergir para a meta, deve atuar, com seu principal instrumento, a política monetária (política de juros), para esfriar a economia.

Contudo, além da questão da estimativa do hiato, há outras na definição do melhor nível da taxa básica de juros para a economia, evitando constranger um crescimento que pode não trazer, fatalmente, pressões inflacionárias. Uma delas se traduz no fato de que o efeito da política monetária é defasado no tempo. 

Faz sentido levar em conta essa defasagem na definição dos juros básicos. Ainda que exerça efeito imediato nas expectativas, uma decisão de subir (ou baixar) juros básicos vai se disseminar pelos canais econômicos não imediatamente, mas em sucessivas ondas. No Brasil, essa defasagem entre o momento em que os juros básicos são determinados e seu máximo efeito contracionista ou expansionista é estimada entre 6 e 8 meses.

Ocorre que lá para meados de 2025, a atividade econômica pode não estar tão aquecida quanto agora. São muitas, por sinal, as previsões de que uma desaceleração no crescimento, em relação ao 1º semestre de 2024, já esteja em curso. 

Projeções para o crescimento neste ano e nos próximos dão suporte a essa hipótese. 

Se a economia crescesse, no 2º semestre, no mesmo ritmo registrado na primeira metade do ano, o PIB avançaria em torno de 5%, em 2024. As previsões de crescimento nas vizinhanças de 3%, portanto, indicam desaceleração.

Assim, quando chegasse em meados de 2025 e a política monetária atingisse o pico de sua ação contracionista, a atividade talvez já estivesse em seu vale de crescimento, com alívio de pressões inflacionárias. Além disso, é possível que a valorização do real ante o dólar esteja num ponto mais alto, bem nessa época, colaborando para frear altas de preços.

Isso porque a tendência é de abertura de maiores diferenças entre as taxas básicas de juros brasileiras e norte-americanas, dado que a trajetória estimada para a Selic é de alta, enquanto a dos Fed Funds, as taxas básicas nos Estados Unidos, devem fazer o caminho inverso, com o Fed (Federal Reserve, banco central americano) repetindo reduções na taxa básica, depois de retomar, agora em setembro, o ciclo de cortes interrompido em 2020.

Chamou a atenção, falando na diferença entre taxas básicas aqui e nos EUA, a pouca importância dada pelo comunicado a uma possível baixa mais permanente nas taxas de câmbio —e, em consequência, em pressões inflacionárias.

Apesar de os analistas de mercado agora desejarem juros mais altos, não é impossível que o Copom tenha de acelerar o passo na derrubada dos juros básicos, a partir de meados de 2025. No mercado, muitos já imaginam que um novo ciclo de cortes possa começar no fim do 1º semestre de 2025, com um recuo de 1,5 ponto na taxa básica, que retornaria de 12% para 10,5% até fins do ano que vem.

Não seria uma novidade na economia brasileira. Um caso marcante desse tipo ocorreu entre fins de 2008 e durante 2009, durante o grande crash global deflagrado pela quebra do banco Lehman Brothers. 

Indiferente à crise que se armava na economia mundial, o Banco Central, então chefiado por Henrique Meirelles, aumentou a Selic ao longo de 2008, inclusive às vésperas da quebra do banco Lehman Brothers, levando a Selic a 13,75%. No ano seguinte, porém, foi obrigado a promover cortes de tamanho inédito, de 1 ponto percentual a 1,5 ponto por reunião do Copom. A Selic caiu 5 pontos percentuais, recuando para 8,75%, em julho de 2009.

Fonte: Poder 360

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