Não tem a menor base na realidade a ameaça de que a tributação de lucros e dividendos recebidos por pessoas físicas resultará em fuga de capitais
O Brasil é o país das jabuticabas, uma fruta da família das myrtaceae, que se caracteriza por uma grande variedade de plantas. Deve ser por isso que certas jabuticabas são encaradas como uma exceção brasileira danosa, enquanto outras se apresentam como exclusividades nativas elogiáveis.
Deste 2º grupo, uma jabuticaba reluzente é a não tributação de lucros e dividendos distribuídos a acionistas de empresas. No mundo inteiro, só 3 países mantêm até hoje essa isenção tributária. Um deles é o Brasil. Os outros 2 são as potências econômicas Estônia e Letônia.
Mas é só aparecer qualquer ideia para acabar com essa exclusividade inexplicável e prejudicial para também ressurgirem argumentos contra o fim do privilégio. Essa, pelo visto, para uma camada do andar de cima, é uma jabuticaba do bem.
É o que se vê agora quando o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anuncia estudos para a criação de um imposto mínimo sobre a renda de milionários brasileiros, que seriam taxados de 12% a 15% de seus lucros e dividendos, antes que uma reforma tributária da renda e do patrimônio possa ser examinada no Congresso.
Falar em taxar lucros e dividendos das pessoas físicas é provocar urticária imediata em peles sensíveis da elite econômica, e ouvir, em resposta, que se trata de bobagem perigosa. A única consequência que os alérgicos vislumbram é o da fuga de capitais e do fechamento de negócios, com transferência de recursos produtivos para o setor financeiro, provocando desemprego e o que mais de negativo se possa empilhar. O caos, enfim.
Esse roteiro é puro terrorismo econômico, sem qualquer base na realidade. Para começar, não ocorre nada parecido com esse caos anunciado nos países que tributam lucros e dividendos. A vida por lá segue sem essas tragédias econômicas profetizadas por aqui.
A realidade teima em lembrar que dividendos pagos a pessoas físicas têm origem no funcionamento de empresas, com seus galpões, escritórios, trabalhadores, máquinas e equipamentos. Levar tudo isso para fora do país seria uma operação meio sem sentido, não é mesmo?
Outras boas rendas de milionários vêm de imóveis, algo, como o próprio nome designa, coisas impossíveis de serem deslocadas de onde estão, e muito menos para fora do país. Além disso, milionários mantêm aplicações financeiras, mas estas já são tributadas na fonte. Em resumo, a fuga de capitais anunciada é uma velha e falsa conversa fiada.
Outra alegação, esta vinda de gente que se considera esperta, é a de que taxar lucros de empresas distribuídos como dividendos implicaria em dupla tributação, uma vez que os lucros das empresas já pagam impostos. O argumento não passa de cloroquina tributária.
É regra universalmente aceita que o patrimônio e as rendas de empresas não se confundem com os de proprietários e acionistas. A tributação do lucro na pessoa jurídica diz respeito à pessoa jurídica, enquanto as regras do imposto sobre a pessoa física regulam a tributação da renda dos proprietários e acionistas das empresas.
Portanto, chamar a taxação de rendas diferentes, que são tributadas por critérios e regulamentos diferentes, de bitributação é promover uma torção heróica nos conceitos tributários. De onde vem a renda, por exemplo, de aplicações financeiras, que é normalmente tributada em separado, se não for de outras rendas, que, por sua vez, também são normalmente passíveis de taxação?
Apenas uma ressalva, em relação à tributação de lucros e dividendos da pessoa física, faz sentido. É a que aponta para o fato de que a tributação de lucros nas empresas brasileiras é elevada, acima do que é cobrado nas demais economias.
Isso se deve, justamente, à jabuticaba da isenção de lucros e dividendos para pessoa física, instituída em 1997, no 1º mandato de FHC. Com a adoção de um imposto sobre lucros e dividendos, forçosamente a tributação sobre o lucro das empresas terá de ser ajustada. O ideal, na verdade, é que todo o capítulo da reforma da tributação da renda promova um ajuste integrado entre as partes que a compõem.
No conjunto de países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), grupo que inclui alguns emergentes, inclusive latino-americanos, a tributação média conjunta de lucros e dividendos de empresas e pessoas físicas é de 42,4% —a média da tributação de empresas é de 23,6% e a das pessoas físicas, 24,6%.
No Brasil, o lucro das empresas é taxado em 34% — alíquota alta, na comparação com a tributação em países da OCDE. Mas esta é a alíquota nominal. Com uma série de abatimentos e isenções permitidas por lei, a média da alíquota efetiva das empresas tributadas pelo lucro real é de 25%, cai para 11%, no caso das empresas do regime de lucro presumido e afunda para 4%, no regime especial do Simples Nacional.
Uma tributação conjunta pela média internacional não seria nada fora da realidade e da normalidade. Ajudaria, de quebra, a reduzir as imensas desigualdades produzidas pelo sistema tributário mais regressivo do mundo.