Levantamento também mostra aumento de empregos; no entanto, casos de transtornos por uso de drogas também subiram
Com o avanço do movimento pela legalização da maconha nos EUA, os efeitos do uso recreativo se tornam visíveis tanto na questão econômica quanto no âmbito social. Ao todo, 39 Estados e o Distrito de Columbia já aprovaram a maconha medicinal, e 24 Estados também legalizaram o uso recreativo. Pioneiros, Colorado e Washington adotaram a medida em 2012.
Estudo publicado pelo Fed (Federal Reserve) da cidade de Kansas em setembro de 2023 analisou os impactos da medida no país. A pesquisa mostrou que Estados que adotaram a legalização viram um aumento na renda per capita e na criação de empregos, mas também enfrentam desafios como o crescimento nos casos de transtornos por uso de substâncias e aumento da população em situação de rua. Os dados analisados cobrem o período de 2000 a 2021, abrangendo todos os 50 Estados norte-americanos. Eis a íntegra, em inglês (PDF – 826 kB).
Segundo o relatório, a legalização da maconha recreativa ampliou o acesso a uma população adulta mais ampla ao remover barreiras ligadas à criminalização e à necessidade de licença médica. A mudança resultou em um aumento de 21% no uso entre adultos.
Andrea Gallassi, professora da UnB (Universidade de Brasília) e coordenadora do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas, diz que a cannabis é uma substância que tem uma menor capacidade de desenvolver dependência nos usuários do que outras drogas como os opioides, que atualmente preocupam o sistema de saúde dos Estados Unidos. Além disso, afirma que a maconha é a substância ilícita mais consumida no mundo e que tem menores impactos que o álcool e o tabaco, amplamente legalizados.
“Foi-se observando que o relaxamento das restrições relacionadas à maconha não estava colocando grandes impactos com relação à saúde das pessoas [e] à segurança pública“, diz ao Poder360.
Questão econômica
Do ponto de vista econômico, o estudo mostra que a legalização da maconha recreativa criou novas oportunidades para tributação. A arrecadação relacionada às vendas totalizou mais de US$ 3,7 bilhões em 2021.
Os Estados onde o uso é legalizado costumam impor taxas de impostos mais altas sobre as vendas para consumo recreativo em comparação com as vendas medicinais, o que aumenta o potencial de arrecadação. Também foi observado um aumento médio de 3% na renda per capita. Esse crescimento foi impulsionado pelo empreendedorismo e pela criação de novas empresas no setor.
No entanto, as arrecadações de impostos sobre álcool e tabaco diminuíram 7%, o que indica um possível efeito de substituição no consumo de substâncias. Segundo o documento, embora os Estados tenham visto o aumento na renda per capita, o efeito líquido sobre as receitas totais permanece estatisticamente insignificante.
“[A legalização] traz uma substância para o mercado de modo que ela terá uma série de medidas de regulamentação que vai ser boa tanto do ponto de vista econômico quanto do ponto de vista social, porque a população é informada. Existe uma comunicação responsável sobre os danos dessa substância, sobre os riscos e, portanto, é algo muito mais transparente”, afirma Gallassi.
A legalização do uso recreativo também contribuiu para a criação de empregos, especialmente em áreas relacionadas à produção, venda e comercialização de maconha, além de impulsionar o turismo, como percebido nos Estados precursores.
No Colorado, os preços de imóveis subiram 6% desde a legalização para uso recreativo e 8% em regiões próximas a locais que permitem a venda. Além disso, o estudo afirma que 23% dos corretores de imóveis em Estados onde a maconha recreativa foi legalizada antes de 2016 relataram que os estoques de moradias diminuíram por causa das compras em dinheiro.
O tempo necessário para abrir lojas de varejo recreativo varia significativamente. O processo em alguns Estados leva menos de 3 meses, enquanto em outros pode levar até 4 anos. Em média, o tempo é de 16 meses entre a aprovação e a abertura dos estabelecimentos.
A indústria da maconha também resultou em um aumento substancial no emprego, com os postos de trabalho no setor passando de menos de 125 mil em 2017 para mais de 425 mil em 2022. Embora esse número ainda represente uma pequena fração do total de empregos nos EUA, a indústria foi responsável por mais de 4% do crescimento total de vagas durante esse período.
Saúde pública
Apesar dos benefícios econômicos, preocupações de saúde pública persistem. O estudo mostra aumento de 17% nos casos de transtornos por uso de outras substâncias e de 35% na população em situação de rua crônica –há mais de 12 meses consecutivos ou ao menos 4 episódios nos últimos 3 anos– de 2000 a 2020. Além disso, o relatório afirma que preocupações sobre o uso de maconha entre jovens continuam, embora outros estudos citados sugiram que as taxas entre adolescentes não aumentaram significativamente depois da permissão para uso recreativo.
As mortes por acidentes de trânsito aumentaram 4%, enquanto as hospitalizações e mortes relacionadas ao uso de drogas apresentaram um declínio de 1% e 10%, respectivamente. A legalização também provocou mudança nas estratégias de aplicação da lei nos Estados. Enquanto as prisões relacionadas a drogas diminuíram 8%, os casos de condução sob efeito de drogas e conduta desordeira aumentaram em 10% e 18%, respectivamente.
“A pessoa que bebe às vezes se sente violenta, o que não há indícios de acontecer com usuários de cannabis. […] O uso da cannabis eventualmente deixará [o usuário] prostrado, então a pessoa cairá em um sedentarismo maior. […] A tendência é que tenham uma produtividade menor”, afirma Tiago Pereira Andrade, sociólogo e coordenador do curso de Ciências do Consumo da ESPM, ao Poder360.
O relatório afirma que a tendência pode ser atribuída a um aumento nos esforços de policiamento, uma vez que os Estados frequentemente alocam uma parte da receita tributária da maconha para as agências de segurança locais.
“No início de 2024, o governo Biden perdoou os crimes federais relativos à maconha e abriu o debate nacional para a reclassificação da planta. Essa atitude, além de indicar uma mudança importante em direção às políticas pautadas nos Direitos Humanos, também representa uma economia significativa para os cofres federais”, afirma o professor de ciências sociais da UFF (Universidade Federal Fluminense) Frederico Policarpo ao Poder360.
Os especialistas ouvidos pelo Poder360 afirmaram que a legalização da cannabis, seja para uso medicinal ou consumo recreativo, é positiva para a população e para o Estado, tanto do ponto de vista econômico quanto social.
“De um modo geral, a legalização significa maior controle dos riscos associado ao uso da maconha. Aliás, de qualquer substância. Legalização é sinônimo de regulamentação”, diz Frederico Policarpo.
” Na minha avaliação […], observa-se sempre pelo lado positivo os países que buscam a legalização. Agora, o que acho que é muito importante nesse processo é que os países observem seus erros”, afirma Andrea Gallassi. A professora diz, ainda, ser necessário considerar o fato de o produto ser uma substância que apresenta riscos, apesar de menores do que outras, para aplicar as regras de mercado condizentes.
“A partir do momento que legaliza, é possível medir e entender o que está acontecendo […], passa-se a controlar, inserir no PIB, trabalhar com políticas públicas, realizar estudos mais sérios para evitar os efeitos colaterais. Não há dúvidas de que é sempre positivo, pensando política e economicamente”, declara Tiago Pereira Andrade.