Entre o passado e o presente, a história se repete; 1968 é conhecido como ano que não terminou
Aconteceu em setembro. Um setembro com cara de agosto, há 56 anos. Foi no dia 2 que o deputado Márcio Moreira Alves (MDB), o Marcito, discursou da tribuna da Câmara apelando para que a sociedade boicotasse o governo militar e reagisse diante dos abusos cometidos pela polícia do então presidente general Arthur da Costa e Silva. O governo pediu a cabeça de Marcito, 32 anos, jornalista corajoso, ferido à bala num tiroteio na Assembleia Legislativa de Alagoas 11 anos antes.
Num agosto com cara de setembro, o deputado Marcel Van Hatten, 38 anos, quase tão jovem quanto Marcito, discursou na tribuna da Câmara despejando críticas à conduta de um delegado federal e ao ministro Alexandre de Moraes, citando as reportagens de Glenn Greenwald e Fábio Serapião sobre a troca de mensagens entre Moraes e um assessor, publicadas na Folha de S. Paulo.
Não há que fazer julgamentos sobre conduta do delegado ou mesmo do ministro e sua equipe. Os fatos falam por si. Van Hatten, naquele 14 de agosto de 2024, com cara de 2 de setembro, assim como Marcito, estava coberto pela imunidade parlamentar, garantida tanto pela Constituição de 1946 quanto pela de 1988. O governo partiu para cima de Marcito, assim como agora o STF (Supremo Tribunal Federal) parte para cima de Van Hatten.
Há uns 20 anos, conheci Marcel Van Hatten em Washington, num evento da GSPM (Graduate School of Political Management), onde estudamos em tempos diferentes. Era um guri recém passado dos 20 anos, magrelo, cheio de energia, meio caladão. Entrou para a política, seguindo o curso natural de muitos ex-estudantes daquela escola e hoje é legítimo representante da nova geração de políticos. Um pouco do que foi Márcio Moreira Alves naqueles idos de 1968.
Embora as posições políticas de Marcito e Marcel sejam distintas, a situação de ambos é muito parecida, porque vinculada à sagrada imunidade parlamentar. O doutor Ulysses Guimarães, sacerdote das prerrogativas congressistas, líder da resistência à ditadura, foi fazer campanha para presidente em 1973. Seu vice era Barbosa Lima Sobrinho, ex-governador de Pernambuco e presidente da ABI, e seu adversário o general Ernesto Geisel.
Ulysses vai à Bahia, o governador Roberto Santos bota a tropa na rua. Diante dos soldados, não titubeou: “Soldados da minha pátria, baioneta não é voto, cachorro não é urna. Respeitem o líder da oposição!”. E passou solene sem que ninguém tivesse coragem de pará-lo.
A prerrogativa parlamentar é sagrada. Um dos pilares da democracia representativa. Não se prende nem se processa congressista sem licença da Câmara ou do Senado, pois são eles invioláveis por pensamento, palavras e votos. Minha geração não aprendeu isso com os exemplos civilizatórios do Supremo, mas com Mário Covas, Nelson Carneiro, Ulysses, Fernando Gabeira, Leonel Brizola, Afonso Arinos, Tancredo Neves, Darcy Ribeiro e tantos outros.
Luiz Carlos Prestes, gostava de ser chamado de senador, teve o mandato cassado pela decretação arbitrária do fim do PCB (Partido Comunista do Brasil) em 1947. O povo deu e o arbítrio tirou, dizia ele.
Nesta semana, o ministro Flávio Dino, ex-deputado pelo PC do B, ex-senador, ex-governador, nascido em 30 de abril de 1968, 4 meses antes do discurso de Marcito e 7 meses mais velho que o AI-5, decretado em dezembro daquele ano, mandou apurar suposto crime na fala do deputado Van Hatten.
O Brasil está dando uma marcha à ré de 56 anos. O Congresso está sendo enxovalhado na sua autoridade e autonomia, algo impensável há menos de 1 década. Muitos se autocensuram, outros se revoltam, exatamente como no passado. Não é por acaso que emendas valem mais que ideias. Convivemos com crimes de opinião não previstos na Constituição ou nas leis. Isso não pode ser normal. Temos o Código Penal em vigor, pronto para punir quem ofende ou ataca de forma inescrupulosa reputações e instituições.
Quem teve o privilégio de conviver com Mário Covas no Congresso, seja como líder na época do PMDB na Constituinte ou como senador, sabe o quanto lutou para que o texto da Constituição fosse claro e preciso na preservação das prerrogativas e da imunidade parlamentar. Para ele, que sentiu na pele a mordaça e a cassação, o conceito de democracia relativa era puro lixo.
Covas, um dos homens públicos mais íntegros e corajosos que o Brasil conheceu, defendeu com todo empenho o mandato de Marcio Moreira Alves num discurso (PDF – 108 kB) na tribuna da Câmara dia 12 de dezembro de 1968, véspera da decretação do AI-5. Por 19 votos contra 12, a Comissão de Constituição e Justiça aprovou a cassação de Marcito. O presidente da Comissão, deputado Djalma Marinho, avô do senador Rogério Marinho (PL-RN), renunciou ao cargo em protesto.
No Plenário, ele usou uma única arma: a palavra.
“Um poder soberano não delega, não transfere. É ele próprio Juiz dos seus atos. Há de ter a independência e a grandeza de manter esta condição inalienável”. E prosseguiu: “Desejo morrer réu do crime da boa fé, antes que portador do pecado da desconfiança. Creio na Justiça, cujo sentimento, na excelsa lição de Afonso Arinos, é a noção de limitação de Poder. Limitação bitolada por dois extremos: sua contenção para que não extravase na prepotência, e seu pleno exercício para que não se despenhe na omissão. Creio no povo, anônimo e coletivo, com todos os seus contrastes, desde a febre criadora à mansidão paciente. (…) Creio na palavra ainda quando viril ou injusta, porque acredito na força das ideias e no diálogo que é seu livre embate. Creio no regime democrático, que não se confunde com a anarquia, mas que em instante algum possa rotular ou mascarar a tirania”.
Covas terminou com um apelo:
“Não permitais que um delito impossível possa transformar-se no funeral da democracia, no aniquilamento de um poder e no cântico lúgubre das liberdades perdidas”.
Por 216 votos contra 141, a Câmara negou licença para processar Márcio Moreira Alves. No dia seguinte, a ditadura arreganhou os dentes, fechou o Congresso, cassou deputados, mandou os adversários para cadeia, o exílio e o cemitério. E 1968 ficou conhecido como ano que não terminou.